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31.3.04
Sempre me impressionou o péssimo grafismo dos panfletos religiosos. Será que é impossível descrever o paraíso sem que isso resulte em kitsch? É uma verdade trivial que a imagem que temos do outro não é o outro. E é uma verdade igualmente trivial que não podemos evitar as imagens. A razão diz nos que, para não lhe fazermos mais injustiça do que inevitável, e também para servir nos da melhor forma possível, devemos pôr em causa e reajustar continuamente a imagem que temos do outro, na medida em que obtemos novas informações, pois nunca dispomos de toda a informação sobre ele, e também porque que o outro não é um objecto estático. Assim, a imagem que temos do outro, embora nunca certa, está amarrado a ele e continua a depender dele. É uma imágem descritiva. Sempre provisório, uma hipotese a espera da sua revogação por uma melhor, procuramos evitar que ela se torna ficção... Mas a imagem tende para emancipar-se da sua orígem, ganhar vida própria e chegar a contornos muito distintos do seu objecto original. E não só por causa da distorção proveniente dos nossos preconceitos, daquilo com que nós a contaminamos. Imagens têm o dom de desenvolver uma verdade própria, segundo o seu potencial inerente. Enquanto o objecto original da imágem ainda está presente (e essa presença é sempre e inevitavelmente limitada), podemos controlar - razoavelmente, se nos fazemos o esforço necessário - a sua justeza. Mas na medida que este objecto deixa de estar disponível, o deslize gradual para a ficção é inevitável. Poieisis. E é bom que isso seja assim. Só é mau não estar consciente deste fenómeno. De que a imagem assim já nem é a tentativa da descrição da sua origem. Etiquetas: sel Wilhelm Lehmbruck: Nu 30.3.04
"[...] A suspeita vastamente espalhada que a guerra contra o terror seria potencialmente mais perigosa do que o próprio terrorismo parece-me completamente justificada. Porque se as consequências directas do terrorismo seriam tudo que deveriamos temer, não havia fundamento para a suposição, que as democracias ocidentais não iriam sobreviver a explosição de bombas atómicas nos seus metrópoles. Catástrofes naturais, que troucessem uma dimensão comparável de destruição e morte para as pessoas, pois também não seriam capaz de por em perigo instituções democráticas. Se por exemplo se mexessem as placas tectónicas da costa do Pacífico e causassem o derrube dos aranha-ceus, isto significava a morte certa para centenas de milhares de pessoas. Mas mal estivessem enterrado os mortos, comecar-se-ia com a reconstrução. E também as autorizações de estado de emergência estariam limitadas no tempo. Completamente diferente seria a situação no caso dum ataque terrorista. Os políticos, que empenhados em fazer tudo para evitar mais atentados, estariam tentados de superar-se uns aos outros na dureza e de tomar medidas mais abrangentes – medidas, que podiam até por termo ao estado de direito. E a raiva que se sente quando sofrimento inenarável é causado por acção humana e não pelas forças da natureza, levará a sociedade pública a aceitar estas medidas. Certo, o resultado não seria um golpe fascista. O resultado seria uma cascata de medidas, que iniciariam uma mudança nas condições sociais e políticas na vida das democracias ocidentais. Juizes e tribunais perdiam a sua independência, e comandantes militares regionais alcançariam de um dia para outro um poder, como o antes só assistia a funcionários públicos eleitos. E os média, por sua vez, viam se obrigados de suprimir protestos contra decisões do governo. [...]" (Richard Rorty num artigo em Die Zeit vom 18.03.04 - descoberto na Causa Nossa) Quem agora deve estar feliz, são os meus sogros. Quando eles compraram a casa em St.º Ant.º dos Cavaleiros, um dos argumentos de venda foi a futura ligação ao Metropolitano de Lisboa. Foi em 1968. Eu percebo a ideia do José do Guia dos Perplexos, uma ideia fascinante, e muito verosímil: O povo judeu, eleito. Eleito para sofrer, para servir de exemplo como é possível manter a identidade, a sua cultura, a integridade e a ética na adversidade, em todas as provações imagináveis e também nas inimagináveis! Como exemplo da nossa condição humana. E não o é? Não é corroborada essa ideia pelo imponente património cultural, artístico e ético que lhe devemos? Percebo que - assim como o José a ideia entende - isto é um grande elogio. Porém... Porém posso imaginar que - se fosse judeu - dispensava desta missão tão nobre, e reclamava para mim o direito de viver uma vida normal, bem e mal, como qualquer outro. São duas coisas distintas: O povo Israel mítico, na imaginação dum cristão, ou mesmo na imaginação de qualquer um, uma ideia poderosa. - E pessoas de carne e osso, que têm uma vida, uma vida deles, que não devia estar ao serviço duma ideia de outros... Não penso que o Guia dos Perplexos está a justificar o sofrimento passado do povo judeu, ou o actual ou um sofrimento futuro... Mas está a dar-lhe sentido - e isto é uma espada de dois gumes! Etiquetas: sel 29.3.04
«O mundo será livre no dia em que enforcarmos o último rei na tripa do último padre», dizia Voltaire. Isto é o quê? Na melhor das hipóteses romantismo revolucionário. De salão. A imaturidade adolescente é um conceito eficaz para uma personagem, autor de blogue. Mas em termos políticos, não presta mesmo. Mas ser artista não dispensa de levar porrada merecida quando propagandeia a rendição feliz ao seu ódio, contra a razão. Com o artista posso discutir a arte, mas no profeta do ódio, mesmo que artista, antes de discutir a sua arte, combato o seu ódio.
na Montanha Mágica. A ver!
28.3.04
É notável que sabemos dizer da pessoa que amamos menos do que de qualquer outra, como ela é. Simplesmente amamo-la. Pois exactamente nisto consiste o amor, o maravilhoso no amor, que nos mantém suspenso no que é vivo, na disposição para seguir uma pessoa em todas as suas realizações possíveis. Sabemos que qualquer pessoa, quando é amada, se sente como transformada, desabrochada, e também que desabrocha tudo para o amante, as coisas próximas, o conhecido desde longe. Muito é o que vê como pela primeira vez. O amor livra de qualquer imágem. Isto é o excitante, a aventura, o realmente emocionante, que não conseguimos acabar com a pessoa que amamos: porque a amamos, enquanto a amamos. Ouve-se só os poetas, quando amam; tacteiam a procura de comparações, como se estivessem embriagados, agarram todas as coisas no universo, flores e animais, nuvens, estrelas e mares. Porquê? Assim como o universo, como a amplidão do espaço de Deus, sem fronteiras, cheio de tudo o possível, cheio de todos os segredos, inapreensível como a pessoa, que amamos. - Só o amor a atura assim. Porquê viajamos? Também isso, para encontrar pessoas que não acham que nos conhecem uma vez para todos; para experienciar ainda mais uma vez, o que nos é possivel nesta vida - De qualquer maneira já é pouco. A nossa opinião de que conhecemos o outro é o fim do amor, sempre, mas causa e efeito se colocam talvez de forma diferente do que somos tentados de assumir - não porque conhecemos o outro, o nosso amor acaba, mas ao contrário: porque o nosso amor acaba, porque a sua força se esgotou, por isso aquela pessoa é acabada para nós. Ela tem que sê-lo. Não podemos mais! Revogamos a disposição de acompanhá-la em mais transformações. Negamos-lhe a exigência de todo o ser vivo, que fique inapreensível, e ao mesmo tempo estamos surpreendidos, porque a nossa relação já não está viva. "Não és", diz o ou a desiludido/a, "pelo que te tomei." E para quem então se tomou? Por um segredo, o que o homem afinal sempre é, por um enigma fascinante, que nos cansámos de aturar. Fazemos-nos uma imágem. Isto é a falta de amor, a traição. (em Max Frisch: Tagebuch 1946-1949) 27.3.04
Joan Miró: O Nascimento do Mundo Quando os Primeiros Homens comeram da árvore do conhecimento, não só descobriram o Bem e o Mal. Descobriram uma coisa ainda mais elementar: a Dúvida. Descobriram que as coisas podiam ser diferente.* Esta descoberta era tão terrível como a expulsão do Paraíso. Se calhar ela mesma era isso: a expulsão do Paraíso. E quem não queria voltar atrás? - Só que isso é impossível. Não há forma de eliminar a dúvida uma vez que ela se instalou. Suprimi-la, ignorá-la, por algum tempo. Mas jamais fazer desaparecê-la. Não existe caminho de volta. O Paraíso está atrás. Todos os caminhos, em frente. Carregando o seu castigo, isto é, o fardo da dúvida, do saber de alternativas, o Homem também carrega o que pode vir a ser a sua dignidade. Só quem tira a vista da costa, da terra firme das Verdades, em que, de qualquer maneira, jamais irá por pé, só quem vira a vista para frente, pode ambicionar a sua dignidade e tem direito à esperança incerta de - eventualmente - encontrar algo além. (* É essa a informação a que tenho acesso.) 26.3.04
Digam-me quando formalizam o vosso Fan-Club Scarlett Johansson. Embora que uma aversão quase insuperável me impede a participação em tudo que é clube, associação ou partido, neste caso sou capaz de abrir uma excepção. A essência da moda consiste no facto que sempre só uma parte do grupo a exerce, mas que o todo se encontra no caminho para ela. Nunca é, sempre está a evoluir. No momento em que se impôs, totalmente, i.é. no momento quando aquilo que só alguns fizeram, é exercido mesmo por todos, sem excepção, já não se fala em moda, p.ex. certos elementos do vestuário, de formas de comportamento. Do facto de que a moda em si não se pode ter espalhado na generalidade , nasce para o indivíduo a satisfacção de que ela nele sempre representa algo de especial, vistoso, enquanto ao mesmo tempo continua sustentado pela comunidade geral que ambiciona a igualdade - não como nas outras satisfacções sociais da comunidade geral. Por isso é a mentalidade, com a qual o adepto da moda se confronta, uma mistura agradável de aceitação e inveja. A moda é o espaço por excelência para indivíduos aos quais falta autonomia interior e substancial e que necessitam de orientação, mas cuja auto-estima também necessita apesar disso alguma distinção, atenção e destaque. A moda eleva até e também o insignificante porque constitui o como representante da totalidade, e ele sente-se sustentado por um espirito da totalidade. Nos fanáticos da moda isto aparece elevado a uma patamar, em que volta a assumir a aparência do individualista, do especial. O maniaco da moda leva a tendência da moda para além da medida normalmente observada: quando sapatos bicudos são moda, os seus confluam em proas de barco, quando golas altas são moda, as suas chegam-lhe ás orelhas, quando é moda ir a missa nos domingos, ele fica lá até a noite etc. O individual que ele apresenta, consiste no exagero quantitativo de elementos que no seu grau são mesmo domínio comum das massas. Ele vai a sua frente, mas exactamente no seu caminho. Aparentemente ele marcha na vanguarda da totalidade, porque são mesmo as pontas ultimamente alcançadas do gosto público, que representa; mas na realidade vale para o heroi da moda o que vale em geral para a relação entre o indivíduo e ou seu grupo social: que no fundo, o líder é o liderado. O heroi da moda representa assim um equilíbrio mesmo original entre motivação social e individualista, e por causa deste fascínio compreendemos a mania da moda - que de fora parece tão absurda - de muitas pessoas de resto sensatas ou até importantes. (Georg Simmel: Schriften zur Soziologie) 25.3.04
Lembro me do incómodo, da repulsa, que me causou o primeiro encontro com a arquitectura de Giorgio Grassi. Era estudante, e tanto eu como os meus colegas de faculdade tinham o rótulo "arquitectura fascista" rápidamente à mão. (Grassi é ou era, quanto sei, comunista...) Ao mesmo tempo não consegui negar um crescente fascínio pelos seus projectos, que, embora que parecem de não precisar do homem, não são de todo vazios e revelam a segunda e terceira vista uma inesperada subtileza, escondida atrás duma ordem implacável. Assim, esta arquitectura está longe, apesar da dívida assumida para com o arquitecto Heinrich Tessenow - este mesmo fascista - do pathos vazio e foleiro de muitas mãs obras do 3. Reich. Com o tempo perdi a minha mã consciência por gostar não só de Grassi como de obras mesmo de arquitectura fascista. É possivel e legítimo criticar obras de arte em termos políticos e morais, mas não se consegue atingir neles, neste caso, o que lhes confere a qualidade de obra de arte. Giorgio Grassi: Habitação de estudantes em Chieti O aforismo é o fim dum raciocínio. A seguir a ele, sobre este assunto, não é suposto de vir mais nada. O que é profundamente estúpido. O mundo estaria muito melhor, se não fosse possível pôr a inteligência ao serviço da estupidez. 24.3.04
Não quero acrescentar muitas palavras ao debate sobre o post e o ainda muito mais escandaloso comentário no Renas e Veados de Filipe Moura. Meio mundo lhe caiu em cima, e com razão. Já deve ter percebido quem faz afirmações e mais ainda generalizações sobre os Judeus move-se em terreno minado. (Do "que morram antes eles" nem falo...) Imagino como deve irritar quem se vê como lutador do lado da liberdade, ter que morder a língua e pensar duas vezes antes de abrir a boca. Mas é mesmo preciso e há uma razão porque isso é assim. Depois de ter pensado mesmo, aí sim, pode, não: deve dizer o que pensa! Ficar calado, amordaçado por um tabú, seria fatal. Isso iria ampliar ou criar, se ainda não existiu, o ressentimento. E o ressentimento é um germe que sobrevive por muito tempo...
Mar Salgado, não só pelos posts de Pedro Caeiro como de Nuno Mota Pinto.
Só um reparo ao NMP: Não mete todos os pacifistas - ou opositores à invasão do Iraque - no mesmo saco. Muito menos com o tal senhor Filipe Moura! O Pedro Caeiro informa-me que não é de direita. Convite para a noite (Janssen) Será que sou "místico orfão de espiritualidade" ou "discípulo das energias positivas", ou devo subsumar-me humildemente "entre outros". Verdade é que sou daqueles que já se indignaram com um post dos Animais Evangélicos, e assim julgo que terei de escolher um dos rótulos que a Voz do Deserto disponibilizou para estas pessoas. (A escolha ainda inclui "romano higienico do costume", mas aqui não caibo mesmo...) Segundo a Embora não sendo nem homossexual nem pedófilo - se vale a pena distinguir entre essas duas condições - indigno-me. Porqué? O que me custa a perceber é como pessoas com acesso a informação, que lhes devia servir para ver que a religião calha a cada um conforme o acaso do seu nascimento - como muçulmano, baptista, hindu, testemunho de jeóva, budista, católico etc. - podem levar os seus dogmata à letra e usa-los como bitola para terceiros. Para uma pessoa inteligente e intelectualmente honesta restam perante este facto óbvio duas opções: Ou interpreta o legado da sua religião de uma forma um pouco mais abstracta, entendendo que a sua religião é só uma manifestação da essência religiosa (o que lhe abrisse um caminho fascinante para perceber melhor desta essência através do diálogo e da comparação com outras manifestações da mesma essência - mas isso cada um fara como entende...); ou, porque não quer prescindir do imaginário e ideário literal da sua religião, (respeito quem sente a necessidade do conforto que isso dá, e também a eventualmente sentida "verdade interior") limitar-se de aplicar os seus dogmata a si próprio e eventualmente os seus. E poupar neste caso terceiros dos seus impulsos missionários, uma vez que não está disposto para o diálogo no terreno da razão... Era o que esperava de uma pessoa inteligente e intelectualmente honesta... 23.3.04
Apetece-me escrever um poema e enterrá-lo bem fundo depois de decorar cada um dos seus versos. Havia de ser o mais belo poema do mundo, sem nenhuma palavra em excesso, luminoso e branco, polido e redondo como uma pérola acabada de trazer do fundo do mar, ainda manchado, porém e por isso, dos limos submarinos, dos segredos do sal, do rumor obscuro das águas que o sol não aquece. Sussurrá-lo-ia uma única vez, baixinho, ao ouvido que pode e sabe escutar. Ali apenas, e no arquivo desorganizado da minha memória, existiria esse poema náutico, só aí ecoaria o rumor e o segredo desses versos de luz. Num e noutro sítio estaria guardado até ao dia distante em que juntos o desenterrássemos e víssemos que a vida nos deu razão aos dois. Nessa manhã havíamos de olhar para trás e ver que a vida foi toda um poema que eu não soube escrever. Gostava de ter sido eu quem escreveu este belissimo texto. Mas não fui. Foi o Apenas um pouco tarde. O Pedro Caeiro do Mar Salgado, escreveu quatro posts indispensáveis sobre uma ameaça - no meu entender - tão grande ou maior do que o próprio terrorismo: Pelos visto já se trava um debate sério na filosofia jurídica - das democracias ocidentais! - sobre a questão de se pode ou deve haver um direito à parte para terroristas. A propósito deste debate PC chama justamente atenção ao facto de que raciocínios destes, que justificam a exclusão de pessoas da comunidade humana sob um direito, foram os que permitiram a escravatura e o holocausto! - E, digo eu, actualmente permitem Guantanamo... (Sobre este assunto recomendo vivamente um livro - traduzido em português - de Giorgio Agamben: Homo Sacer.) Depois insiste ainda, num outro post, na coerência e no respeito da legalidade, perante do rejubilo por causa do assassinato - perdão: da "eliminação" do Sheik Yassin. O Pedro Caeiro é quem melhor do que qualquer outro bloguista sustenta a minha confiança de que a coerência e a sensatez também residem à direita. Ou será que as posições que ele defende nestes posts o excluam da direita? Ele que me diga. Ou os outro do "bom bordo".... 22.3.04
Canaletto: Vedute
... para o Paulo Gorjão e o Rui Branco:
Sobre o porte: A sabedoria é a uma consequência do porte. Como não é o objectivo do porte, a sabedoria não pode motivar ninguém para a imitação do porte. Assim como eu como, não comerão. Mas se comem como eu, isso será vos útil. O que digo aqui: que o porte cria os actos, assim poderá ser. Mas têm que ordenar as necessidades, para que assim seja. Muitas vezes vejo, diz o pensador, tenho o porte do meu pai. Mas os actos do meu pai não cometo. Porque é que cometo outros actos? Porque há outras necessidades. Mas vejo que o porte dura mais do que a forma de agir: Ele resiste às necessidades. Certas pessoas só podem fazer uma coisa, se não querem perder a face. Como não conseguem seguir às necessidades, perecem facilmente. Mas quem tem um porte, este pode fazer muitas coisas e não perde a sua face. (Bertolt Brecht: Histórias do Sr. Keuner) Como são fáceis as coisas para os sábios... ...é talvez uma das duas palavras mais bonitas que conheço, escreve o Timshel. Também acho. Imagino o que seria viver sabendo ao certo o que acontecerá a seguir. Podiam ser boas coisas, mas a vida tornar-se-ia insuportável. Ou, para exemplificar melhor: Imagino que teria de viver de novo a minha vida, pormenor a pormenor, só desta vez já sabendo o que vai acontecer. O inferno. (Devo também essa ideia a Max Frisch, que fez dela uma peça de teatro: Biografie: Ein Spiel.) Quanto ao Timshel: É um dos blogues que não leio todos os dias. Mas quando o faço, como hoje, leio o com muito proveito. Inteligente, desprentensioso, sensato. E com um pensamento independente. Muito recomendável! 21.3.04
"Neste livro, falo sobre o que é ser chique, falo das razões estéticas da pedofilia com personagens da pedofilia que entraram em grandes livros, indico e ensino como se educam as crianças desde pequeninas [...]" (Paula Bobone sobre o seu novo Livro "Socialissimo") Encontrei o texto no Epicentro, um blogue aliás bem bonito... 20.3.04
Frühling lässt sein blaues Band Wieder flattern durch die Lüfte; Süsse, wohlbekannte Düfte Streifen ahnungsvoll das Land. Veilchen träumen schon, Wollen balde kommen. - Horch, von fern ein leiser Harfenton! Frühling, ja du bist's! Dich hab' ich vernommen! ______________ É ela! Primavera lança a sua fita Azul de novo pelos ares; Odores doces, familiares Percorrem a terra, anunciando. Violetas sonham já, Querem vir em breve. - Ouve, de longe um som de harpa, leve! Primavera, sim, és tu! Foste tu quem fui escutando! ______________ Hoje de manhã saí pela porta, e lá estave ela, lembrando-me - como todos os anos - este poema de Eduard Mörike. É pena não saber traduzi-lo melhor... 19.3.04
Um homem anda na rua. De minuto em minuto para, bate palmas por alguns segundos e segue. Perguntam-lhe: - Desculpe, mas porque é que está a fazer isso? - Ah, para manter afastada a manada de elefantes que ameaça atropelar-me. - Oh meu caro, não há aqui elefantes em lado nenhum! - Está a ver como resulta! (cf. - de memória - Paul Watzlawick: The Situation Is Hopeless, But Not Serious: The Pursuit of Unhappiness) Etiquetas: sel Paul Klee: Ad Parnassum 18.3.04
Acho que já escrevi demais sobre o terrorismo, a Espanha e o Iraque, tendo em vista a minha falta de conhecimento de pormenor e de vocação de analista político. Não tenho mesmo ambição nenhuma de concorrer neste domínio com blogues que fazem isso com uma excelência e profundidade como o Adufe ou o Bloguítica, por exemplo. Mas quero aqui comentar a filosofia de fundo deste e de outros posts muito interessantes (do 17.03.04) do Liberdade de Expressão sobre esta matéria. O LE faz uma análise diferente da que se costuma ouvir seja à direita, seja à esquerda. Diz que não devemos criticar os espanhois pela decisão de sair da guerra do Iraque, porque não fazem mais do que agir no seu interesse. O argumento geral que sustenta essa ideia é o que a política não tem que ser ética, mas defender interesses: A ética (imperfeita) só pode e têm que emergir dos interesses. A ideia de que a ética emerge só e inevitavelmente dos interesses, faz parte da crença (diria quase religiosa) dos dias da infância do liberalismo. É a ideia de que basta deixar os interesses agir livremente, e o mundo se organizará automaticamente como deve. Mas se vejo que a história entretanto demonstrou brutalmente quais catástrofes podemos causar, se tentamos obrigá-la a força a um certo rumo, não vejo também que o laissez-faire nos trouxe os benefícios prometidos. Mas a minha crítica príncipal ao argumento do LE em defesa da nova política espanhola é outra: Não é nada líquido que o interesse duma pessoa ou dum estado exclui posturas solidárias que incluam sacrifícios a curto prazo. O Liberdade de Expressão parte erradamente do pressuposto, que o interesse da Espanha seria a cessão de ataques terroristas no seu terreno, já, e ponto final. Recusa a racionalidade duma política dum estado, que apesar de eventualmente (e neste caso já não só eventualmente) trazer-lhe prejuizos a curto prazo, pode beneficiar a comunidade em que se insere, e assim também a ele, numa medida que justifica o sacrifício. (Certamente é esse o raciocínio dos bem intencinados defensores da intervenção no Iraque...) Estados podem ter intuitos solidários, e tê-las pode ser racional. A própria existência de estados é a prova desta possibilidade. Porque eles são resultados da solidariedade de grupos, que subordinaram os seus egoismos a um interesse colectivo, por entender que isso acaba de beneficiar todos. As vezes parece-me - nos meus dias mais optimistas - que isso é que é a evolução da civilização: A sucessiva subordinação de egoismos de grupos mais pequenos, depois de estabelecido regras de moderação de conflitos entre eles, ao egoismo dum grupo maior que os inclui. Cujo último estado seria a civilização mundial, regida por uma lei com que todos se identificam... (Daí provém a minha insistência na legalidade internacional, e a consequente recusa da guerra do Iraque...) Etiquetas: sel 17.3.04
56% dos Iraquianos consideram que estão melhor do que há um ano. (Contra 19% que acham que estão pior.) 51% dos Iraquianos não gostam de ter tropas estrangeiras no Iraque, mas só 15% querem que saiam já! Esses valores - não sei avaliar a sua credibilidade, mas quem encomendou a sondagem merece-me alguma confiança - dão-me que pensar. Primeiro: É indubitavelmente um facto positivo assinalavel, que foi possivel realizá-la. Segundo: O facto de uma clara maioria dos Iraquianos considerar a sua situação hoje melhor do que há um ano, desmente quem chama as consequências da guerra um desastre. Podem ser um desastre em muitos aspectos (eu acho que são), mas na não propriamente irrelevante opinião dos que têm que viver no terreno, não o são! E como mais relevante do que os 56% que se consideram em melhor situação hoje, aparentam-se os 70% que julgam que no próximo ano estarão melhor. 70%, isto é um considerável capital de esperança. (Não é de confudir com a confiança nas forças ocupantes, que é claramente menor...) Mas só metade da população quer um regime democratico. Eu temo que isso não chega. Nenhuma sociedade aguenta-se como democracia, sem que uma vasta maioria a realmente quer. (Lembro me do exemplo de Weimar...) Restam as seguintes alternativas: - Uma democracia sob a protecção das forças de ocupação, que teriam de continuar no país (por quantos anos?); - Um regime autoritário como os conhecemos na região, com a benção ou tutela das forças de ocupação, mas que depois de o ter minimamente estabilizado já podem sair do terreno; - Um regime autoritário ou um estado islâmico sem a benção das forças de ocupação, depois de estes terem - nolens volens - saido; - Uma situação de guerra civil prolongada. Realmente espero estar enganado, mas não vejo tanta razão para o optimismo dos Iraquianos... (* no Público) Playmate da semana: Venus com espelho (Velasquez) 16.3.04
Outra vez Blogo...Existo
Porque é que escrevo aqui sobre a Espanha, o Iraque e a luta contra o terrorismo? Desde o post que já referi ontem até ao de agora - Dúvida -, está lá tudo dito que também penso, e da melhor forma. Ontem o José Manuel Fernandes voltou a insistir no que estamos numa guerra total. Se não soubesse que o director do Público sabe melhor, proporia-lhe uma conversa com o meu pai, que mesmo tem sobrevivido uma guerra total. A insistência neste termo é pura e descarada demagogia. E esse nivelamente das diferenças entre conceitos é sempre utilizado por quem quer minar o terreno para um discurso da razão. E é por isso, tendo em vista quem fala - o director de um jornnal de referência (o meu preferido) - especialmente preocupante. Mas falando da guerra, mais ainda. Porque nos sabemos que na guerra vale quase tudo, - então numa guerra total vale mesmo tudo! - (Assim foi definido por Goebbels, o pai deste conceito.) Seguramente o José Manuel Fernandes não quer convencer-nos que, na luta contra o terrorismo, vale tudo? Muitos se indignam com a ideia de que ter sido o medo, que levou os espanhois a mudar de opinião depois dos atentados e a votar na PSOE. Mas que os espanhois levam mal ao governo Aznar, que tiveram que pagar com vidas uma guerra que ele lhes impôs, contra a sua manifesta vontade, não tem - em si - nada de vergonhoso. Preocupante e, sim, mesmo muito pouco elevador seria, se a objecção inicial dos espanhois a invasão do Iraque era motivado por medo de retaliações terroristas. Mas não acredito nisso. Os terroristas têm influenciado as eleições? E ficaram contentes com este facto? - Não duvido. Agora exigir do novo governo do PSOE que não faça o que sempre defendeu (e por razões muito melhores do que a cobardia), e prometeu aos eleitores e continua a entender como acertado, para em vez disto fazer o contrário, só pela razão de não dar essa satisfação ou mesmo incentivo aos assassinos - isso só consegue fazer que já esta desprovido de qualquer bom senso, como Luis Delgado. (E muitos outros, tenho que admitir...) Como se fosse que o atentado de Madrid ter invalidado todos os argumentos do PSOE ou dos 80% dos espanhois que estão contra a guerra no Iraque. O que não se recomenda mesmo, neste momento, são reacções pavlovianas.
é um método para lhes descobrir aspectos ainda não observados. É um método poderoso e fértil, mas requer uma disciplina muito rigorosa e pode por isso falhar facilmente. Essa disciplina consiste no fundo num esquecer, numa exclusão da habituação ao objecto observado, logo toda a experiência e conhecimento da coisa. Isto é difícil, porque é notóriamente mais fácil aprender do que esquecer. Mas mesmo se o método do esquecimento intencional não tivesse sucesso, traz o seu emprego à luz coisas surpreendentes, e ela faz isso exactamente graças à nossa incapacidade de esquecer.
(em Vilém Flusser: Dinge und Undinge) 15.3.04
Es Tudons - Túmulo em Menorca Esta e muitas outras fotografias aereas de lugares arqueológicos neste fantástico livro de Georg Gerster e Charlotte Trümpler... ...sobre o atentado de Madrid e as eleições espanhois no Cruzes Canhoto. (Hoje, dia 15.) Mas a melhor análise, com a qual me identifico largamente, e a do Blogo...Existo. J.P. Castro propõe um estoiciscmo activista, e justifica o com as seguintes reflexões: "[...] O terrorismo indiscriminado não é [...] apenas uma forma de luta política particularmente perversa. Pura e simplesmente, não é uma forma de luta política. [...] Este tipo de terrorismo é um pouco como os tremores de terra ou a sinistralidade rodoviária. Não podemos verdadeiramente evitá-los, embora possamos adoptar políticas preventivas, de algum modo semelhantes à construção anti-sísmica, orientadas para a minimização dos seus efeitos. [...] Paradoxalmente, quanto mais acentuarmos as medidas de segurança destinadas a proteger-nos de ataques terroristas, mais indiscriminados eles se tornarão. [...] Tem-se dito -- e é verdade -- que a confiança nos poderes da razão é posta em cheque com acontecimentos sumamente irracionais destas proporções e consequências. Acredito que devemos aceitar esse desafio, em vez de reagirmos de forma igualmente irracional, sob pena de nos resignarmos à derrota progressiva de todos os valores em que acreditamos. [...] Mas o terrorismo internacional não pode subsistir, pelo menos com a sua força actual, se não beneficiar de certas condições facilitadoras. Nós não queremos questionar algumas dessas condições, tais como os direitos e garantia dos cidadãos, a liberdade de expressão, a liberdade de movimentos, o acesso à internet, etc. Mas podemos e devemos questionar a liberdade de circulação dos capitais tal como hoje ocorre, que nenhum princípio de sã gestão económica recomenda. Tal como podemos e devemos questionar certas instituições cujo traço distintivo é a protecção de actividades ilegais. Essas actividades só podem existir porque a comunidade internacional não dispõe, ou não quer dipor, de meios para impor a sua vontade a países e interesses particulares que prosperam à custa dessas falhas de regulação. Tal como devem ser chamados à pedra estados pária que prosseguem programas de fabrico de armas de destruição massiva ou dão cobertura e treino a terroristas, devem também ser submetidos a escrutínio todos aqueles que dão guarida ao crime organizado internacional. Chegados aqui, é indispensável referir o problema central de tudo isto. Ninguém duvida seriamente de que a grande fonte de financiamento do terrorismo é o narcotráfico. Toda a actividade do regime talibã era, como se sabe, suportada pelo comércio do ópio. [...]" (realce por mim) Agora o que é preciso é cerrar fileiras. É altura para te lembrares a quem pertences, qual é o teu lado. Quem agora ainda insiste em nuances, em tentar "compreender" o inimigo, já está muito perto de cometer o único crime imperdoável em guerra: Alta traição. Por isso, percebe: Há um tempo para tudo. Agora não é altura para debater, é altura para agir. Em nome da nossa civilização, vais fazer este pequeno sacrifício e adiar as tuas dúvidas para os tempos de paz. E deixa-te lá dos escrúpulos morais. Tu bem sabes que, como somos civilizados, não cometeremos atrocidades - isto é, se for evitável, mas certamente nunca de proposito, ou se tiver que ser, certamente o sofrimento não seria objectivo em si, como o é para o inimigo! Que uma guerra não é um passeio, mas uma guerra, onde pessoas sofrem, também - infelizmente -por vezes inocentes, não é novidade. Sempre foi assim. Mas há valores que valem isso. Os nossos. Por isso, faz o que te dizemos: deixa-te de tretas , e escolhe o teu lado! Se não escolhes o nosso, que é o teu - terias obrigação de sabé-lo! -, então ficamos a saber de vez onde tu estás. Neste caso não te queixes se acabarás de ser tratado correspondentemente..." 14.3.04
Como se vê, adquiriu o Quase em Português uma nova pele. Apesar de - desde o início - eu não saber se na próxima semana ainda terei assunto ou tempo para o blogue. Mas por um lado o hábito cria confiança: Se todos os dias até hoje o sol nasceu, porque não haverá de nascer amanhã? - E no outro caso posso socorrer-me de Martin Luther, que dizia que mesmo se soubesse que amanhã o mundo acabava, isso não o impediria de plantar ainda hoje uma maceeira. 13.3.04
prémio do Homem a dias:
Condeno veementemente os atentados de Madrid, mas acho quem quer aproveitar este crime para eliminar a palavra mas no raciocínio sobre ele, já concretizou para si o que está a exigir aos outros: A eliminação da inteligência. Já tinha reparado nisto na ocasião do 11. de Setembro: Muitos que julgava dotados dum cerebro, passavam a pensar com os intestinos. 12.3.04
Já ouvi quem cá ficaria mais aliviado, se o massacre fosse por conta da ETA. Porque se fosse um castigo que a Al Quaeda aplicou à Espanha, pelo apoio à guerra no Iraque, então nós em Portugal deveriamos ter medo, por causa da Cimeira das Lajes, e agora com o Euro 2004 a vista... Fui contra a guerra no Iraque, mas não quero ter nada a ver com aqueles, cujo argumento era a "cautela" perante uma eventual retaliação! (Um médico madrileno, ontem, a porta do hospital, no fim de um dia de luta pela vida dos feridos dos atentados.) 11.3.04
O massacre em Madrid deixa-me sem respostas. Não só porque me sinto mais abalado - um pouco estupida- e egoisticamente - pelo simples facto de Madrid estar aqui ao lado, ao contrário de Bagdad ou Jerusalém, mas também pelo carácter absurdo desta carnificína. Aqui ninguém morreu numa "guerra das civilizações". Também não vale o raciocínio: "Extrema violência é resultado de extremo ódio que é resultado de extrema opressão ou seja resultado de sofrimento." Se acredito que a defesa contra o terrorismo passa pela identificação e eliminação das causas, como é que se aplica isso a este caso? Não sou especialmente conhecedor, mas já passei muitas vezes pelo Pais Basco. Não vi lá nada que explicasse (e claro que nunca "justificasse") esta brutalidade. Então estamos perante um problema policial? Penso que sim. Perante um problema policial muito grave. Mas este caso reforça a minha convicção de que terrorismo não é guerra e que a nossa resposta não pode, não deve mesmo ser guerra. A guerra suspende os nossos direitos e os nossos valores mais nobres, a nossa humanidade. Não façamos guerra. Fazer guerra é fazer o jogo deles. Não sei se não teremos que viver, por décadas, com cenas destas. Não sei como contrariar essa violência. Com educação? Já não sei. Há 30 anos a Espanha é uma democracia. O País Basco é autónomo. Para quê é que eles estão a matar? Mas apesar de tudo, continuo a insistir, e o massacre aqui ao lado não o põe em causa: Estamos no mundo civilizado. Defendamos essa civilização, com determinação, com sacrifício, mas mantendo a civilizada. 10.3.04
Playmate da semana: Mlle O'Murphy (Boucher) O post de Nuno Guerreiro é extenso e multifacetado. E como já disse, vale a pena lê-lo na íntegra e com a necessária atenção. Mas vou aqui, no Quase em Português, citá-lo em partes, temáticamente distintas, assim como me esclareceu aspectos diversos da questão. A primeira (re-)descoberta é a da precaridade psicológica em que inevitávelmente uma pessoa se encontra, que é membro dum povo cujo direito a existência foi desde tempos ancestrais, e da forma mais concreta e brutal, posto em causa. (Eu como Alemão devia ter consciencia disso, mas também eu esqueço-me frequentemente deste fardo): "Apesar de todas as formas de racismo e xenofobia serem execráveis na essência, infelizmente o antisemitismo não pode ser catalogado como uma simples variante destas aberrações sociológicas. Num livro em que analisou com acutilante lucidez o antisemitismo entrincheirado na sociedade francesa, (Réflexions sur la Question Juive) Jean-Paul Sartre escreveu: “O que pesava sobre ele [Judeu] originalmente era a acusação de ser o assassino de Cristo. Alguma vez parámos para ponderar a intolerável situação de homens condenados a viver numa sociedade que adora o Deus que eles são acusados de matar? Originalmente, o Judeu era então um assassino ou o filho de um assassino – o que aos olhos de uma sociedade com um conceito pré-lógico de responsabilidade acaba inevitavelmente por ser a mesma coisa – e por isso ele próprio tornou-se um taboo. É evidente que não podemos encontrar aqui a explicação para o antisemitismo moderno; mas se o antisemita escolheu o Judeu enquanto objecto do seu ódio, é por causa do terror religioso que este sempre inspirou.” [...] O judeu enquanto pária social tem sido objecto de inúmeros tratados, ensaios e romances. A sua caracterização cabe aqui como parte da discussão destas raízes. No livro que acima referi, Jean-Paul Sartre refere-se também a essa condição: “Este é talvez um dos significados de O Julgamento de Kafka, ele próprio um judeu. Tal como o herói deste romance, o Judeu está envolvido num longo julgamento. Ele não conhece os seus juizes, raramente os seus próprios advogados; ele não sabe do que é acusado, mas mesmo assim sabe que é considerado culpado; a sentença final é continuamente adiada – por uma, duas semanas – e ele aproveita estes atrasos para melhorar sua posição em milhares de formas possíveis, mas cada precaução tomada ao acaso empurra ainda mais o espectro da culpa. A sua situação externa pode parecer brilhante, mas o julgamento interminável fá-lo definhar, e por vezes acontece, tal com no romance, que homens o carreguem sob a pretensão de que perdeu o caso, e o assassinam num qualquer baldio dos subúrbios.” [...]" Claro que isso não justifica posições ou actos que para alguém livre deste fardo seriam injustificáveis. Mas ajuda a compreendé-las. Mais: Mostra como extremamente exigente é esperar - por exemplo no conflito Israel-Palestina - um comportamento generoso, com gestos de confiânça, que se dê o primeiro passo.... (Pretendo ainda abordar, mas não hoje, outros aspectos deste post...) 9.3.04
O Nuno Guerreiro acabou (ontem) de publicar o prometido post sobre o antisemitismo. Já o li e imprimi, para guardá-lo. Este texto extenso e profundo deve ser publicado também fora da blogosfera! Percebi muitas coisas que antes não me eram tão claras. Voltarei, após melhor digestão do texto, ao assunto. Oiço, de vez em quando, argumentos racionais e pragmáticos no debate sobre a pena de morte: se existe ou não um poder dissuasor da pena, os riscos de erro de justiça etc. Mas esses são sempre argumentos secundários, apresentados para reforçar e justificar convicções já fortalecidas. Porque as convicções nesta questão são quase sempre convicções metafísicas, e como na questão do aborto, não me lembro ter visto uma vez alguém mudar de opinião em virtude de um argumento. Antes na sequência de uma experiência, ou dum exemplo, como agora o caso Dutroux. Parece-me que há, subjacente às posições em favor e contra a pena de morte, duas formas distintas de cálculo metafísico. Por um lado uma economia da culpa, segundo a qual raciocinam os defensores da pena capital, e por outro o que quero chamar uma economia do sofrimento, dos que estão contra. Os crentes na economia da culpa acreditam que uma pessoa deve e pode pagar pelas males que faz. E não no sentido de reparar os danos. A pena de morte não repara danos. (A única coisa que o condenado pode dar às suas vítimas, isto é aos eventuais familiares e amigos das suas vítimas, com a sua morte, é a satisfação da vingança. Pouca coisa para uma vida.) Acreditam que o delinquente deve pagar porque assim se redime. Ou, talvez nem isso, mas em virtude de uma ideia de que se corrige algo com a sua morte... Esta ideia pressupõe que existe uma via de - se não equilibrar as contas (como pode um Saddam Hussein ou um simples serial-killer pagar adequadamente?), pelo menos fazé-lo parcialmente. Mas o muitas vezes enorme resto, que fica, mesmo calculando assim, também eles têm que deixar para à justiça de um outro mundo... Quanto a mim, não consigo ver as coisas assim. Sou daqueles que não acreditam que algo fica melhor através da inflicção de mais um sofrimento. Não acredito porque a minha economia metafísica, por assim dizer, é outra: Acredito que todos nós, humanos, estamos juntos, embora também perante a possibilidade da felicidade, mas antes de mais perante o sofrimento certo e a inevitabilidade da nossa morte. Acredito que deste facto, da nossa condição humana, decorre uma solidariede, cujo nome acertado é compaixão. Excluir algum humano desta solidariedade, tão mal que ele seja, não me parece fazer sentido e não me parece certo. Porque - ainda falando em termos metafísicos - atinge todos nós, a humanidade. 8.3.04
7.3.04
Frei Bento Domingos chama hoje no Público (infelizmente omisso na versão online) atenção a um aspecto que tambem a mim me parece pertinente. Que a énfase, que o filme de Mel Gibson dá ao sofrimento de Cristo, oculta o sofrimento de incontáveis outros... Assumindo aqui, em virtude do argumento, provisóriamente pressupostos teológicos que não são meus: Não-me parece que o essencial foi o que Cristo nos deu - o seu sem dúvida enorme sacrifício - mas o que nos tirou: a nossa incomparavelmente maior culpa. O seu sacrifício, este já fizeram involuntáriamente milhões, e voluntáriamente milhares. Se Cristo é único, não é pelo Seu sofrimento. Se não é único, como eu acredito, então este sofrimento merece todo o reálce, mas como exemplo do sofrimento de todos que se sacrificaram como ele em nome do amor. E tambem de todos que foram sacrificados em nome de o quer que seja... Foi o Homem, que O crucificou. Mas também foi o Homem, quem crucificaram. O.M.A. (Rem Koolhaas): Fukuoka Há excepções: Estas habitações em carpete acho deslumbrantes! A sua habitabilidade, no entanto, parece-me duvidoso. Mas como os Japoneses não são muito mimados neste domínio... Não sou grande fã da obra de Rem Koolhaas. Não gosto muito dela. Mas tenho poucas dúvidas que é o arquitecto mais importante do nosso tempo. E o que gosto mesmo nele é a sua coragem. Este homem faz uso da sua inteligência. E está-se a borrifar pelo que se alguém eventualmente acha os seus resultados inhumanos. Só por isso consegue ir tão longe e ser tão interessante. Isto é - não engraçado ou bonito: interessante. Abre-nos a vista para um campo de possibilidades, algumas delas assustadoras, embora também ebriagantes e sedutoras. 5.3.04
Horst Janssen: Edgar Allan Poe Annabel Lee It was many and many a year ago, In a kingdom by the sea, That a maiden there lived whom you may know By the name of Annabel Lee; And this maiden she lived with no other thought Than to love and be loved by me. I was a child and she was a child, In this kingdom by the sea; But we loved with a love that was more than love- I and my Annabel Lee; With a love that the winged seraphs of heaven Coveted her and me. And this was the reason that, long ago, In this kingdom by the sea, A wind blew out of a cloud, chilling My beautiful Annabel Lee; So that her highborn kinsman came And bore her away from me, To shut her up in a sepulchre In this kingdom by the sea. The angels, not half so happy in heaven, Went envying her and me- Yes!- that was the reason (as all men know, In this kingdom by the sea) That the wind came out of the cloud by night, Chilling and killing my Annabel Lee. But our love it was stronger by far than the love Of those who were older than we- Of many far wiser than we- And neither the angels in heaven above, Nor the demons down under the sea, Can ever dissever my soul from the soul Of the beautiful Annabel Lee. For the moon never beams without bringing me dreams Of the beautiful Annabel Lee; And the stars never rise but I feel the bright eyes Of the beautiful Annabel Lee; And so, all the night-tide, I lie down by the side Of my darling- my darling- my life and my bride, In the sepulchre there by the sea, In her tomb by the sounding sea. O quê aconteceu ao Pedro Jordão?
"Não sei o que é Arquitectura Moderna ou Arquitectura Pós-moderna, só conheço Arquitectura. Que é boa ou não é." Isto é uma citação de memória de Ieoh Ming Pei, por isso não garanto não ser eu o autor da segunda frase... Não é que estes debates sobre "ismos" não têm sentido, reconheço que têm. Mas para quem faz arquitectura, estas categorias são nocivas. Nada pior do que procurar a justificação ou - pior ainda! - o sentido da sua produção arquitectónica em escolas, teorias ou livros. Antes ainda que se use estas teorias como armas de aremesso na luta entre os arquitectos por um lugar ao sol! (É o que acontece.) Por isso as minhas perguntas ao fazer projecto são sempre os mesmos. Para além do programa, o que me interessa - imaginando-me no interior do futuro edifício: O que vejo? O que oiço, cheiro? O que sinto? Como é que me movo? E depois: Como é que faço... Estas perguntas preocupam-me tanto que normalmente - isto é um sinal de que o projecto vai bem - não chego à teorização "ística". É verdade que este método faz com que os meus projectos tendem para a simplicidade. E, de facto, acho a simplicidade um grande bem na arquitectura. Mas ninguém se iluda: Há uma simplicidade antes e uma depois de resolver o problema! 4.3.04
Estudei arquitectura em Berlim na altura quando lá decorreu a IBA (Exposição Internacional de Arquitectura), o que tinha a fantástica vantágem de que quase todas as semanas uma vedeta de estatuto internacional estava na cidade, o que resultava quase sempre numa conferência na Faculdade. Lembro-me da vez de Raimund Abraham - um menos conhecido arquitecto e professor da Cooper Union - que apresentava um projecto dum prédio de trinta metros de altura e de três metros de largura, que no interior era quase só escadas. Assumidamente inabitável. O homem foi tão apupado que não conseguiu terminar a sua conferência. Nesta altura, a Faculdade de Arquitectura da TU Berlin ainda estava fortemente politizada e dominada por quem lutava contra qualquer gesto arquitectónico que não cumpria uma função social, de preferência revolucionária. Dois anos mais tarde a sorte dum ex-aluno desta Cooper Union não foi muito, mas um pouco melhor: Daniel Libeskind conseguiu concluir a sua conferência sobre um projecto dele, que previa um prédio de dois mil metros de comprimento situado no baldio que era o Potsdamer Platz. Era um enorme parallelepipédico que depois dos primeiros quinhentos metros se levantava do chão para se estender até para cima do muro. Os meus colegas na audiência não gostavam, entre outro, que o homem não tinha nenhuma resposta convincente sobre as funções que previa neste volume de construção considerável. Em vez disto ele não parou de falar dos livros filosóficos e arquitectónicos que mais o marcaram e com cujas páginas rasgadas tinha revestido toda a maqueta. (O que tinha - isso era impossivel negar - um efeito lindissimo.) Pensavam muitos que a Faculdade de Arquitectura se despedia naquele dia de um tarado de que nunca mais ouvirá falar... Como podemos reclamar o estatuto de arte para a arquitectura, se negamos a ela o direito a manifestos, projectados e construidos? Que exploram e materializam ideias e conceitos novos? Que não têm que ser habitaveis, ou sensatas, ou baratas. Desde que não se gasta dinheiros públicos dedicadas a habitação, estou me completamente nas tintas para a habitabilidade. E relativamente a casa Farnsworth: Estarei tão sozinho e completamente pervertido pela minha formação de arquitecto moderno, quando admito que a aceitaria, se a fundação Farnsworth me fizesse o favor de oferecê-la, como casa de fins-de-semana? Prometo de habitá-la mesmo e de não alterar nada! Etiquetas: arquitectura, sel O João Morgado Fernandes tem toda a razão. Também eu só posso subsumar essa decisão sobre o a continuada criminalização, mas não-perseguição do aborto àquela hipocrisia institucionalizada que descrevi no meu post CD'S Piratas... É engraçado que o David Bengesdorff entendeu-o como complacente e o Terras do Nunca como divertido, e só o Miguel da Viva Espanha realmente parece ter sentido e partilhado o desespero que nele se escondeu... __________ Fico aliviado pelas mulheres (aquelas que não têm meios para fazer um aborto limpo, seguro e legal no estrangeiro), que pelo menos já não têm de temer a prisão. Mas que vão continuar a ter - a não ser que a promessa de Leonor Beleza se cumpre, o que tenho que ver para crer - de temer pela sua saúde e a sua vida. Tenho o maior respeito pelas pessoas que vêem no aborto uma coisa terrivel. Mas nunca percebi para que a sua criminalização serve, se em seguida a lei não é imposta de forma consequente. Mas essa última imposição só uma minoria pequena quer. E eu também não. Consciente que vou desiludir os meus amigos da theosfera tenho que admitir que não acho a vida de um feto comparável à uma vida humana no seu sentido pleno. Sei que se consegue esgrimir sobre esta questão muitos argumentos técnicos, médicos e lógicos. Mas não me parece que essas aqui contam... Mies van der Rohe: House Farnsworth Esta é a pior casa do mundo, segundo o Projecto. O que vejo são duas lajes que parecem flutuar no espaço, e entre eles, delimitado por uma fina membrana de vidro, a habitação, que deixa ainda espaço para um grande terraço. Paredes não as há. Existe um corpo de madeira, que não chega ao tecto, que contém os equipamentos mesmo indispensáveis: bancada de cozinha, arrumos, I.S. Para além disso, há um screen (o roupeiro) que junto com o corpo referido, estrutura de forma rudimentar o espaço. Podia dizer-se, se fossem paredes, teriamos um fogo, um T1. Não conheço as condições da encomenda deste projecto, mas sei que Farnsworth era um mecenas e coleccionador de arte, e que esta casa não era seguramente a sua primeira (provavelmente nem a segunda, nem terceira) habitação. Em vez dela, podia ter adquirido mais um Picasso*. O que muitos incomoda naquela casa é que não confere abrigo psicológico nenhum. Mas isto é só a outra face do seu grande fascínio: Poder habitar num espaço contíno, que não está encerrado por paredes. Poder sentir o espaço. E vejam só de que espaço estamos a falar. Um belissimo jardim inglês privativo... Que essa casa não serve como primeira habitação a talvez ninguém, pela promiscuidade acústica e de cheiros entre os seus "compartimentos", pela falta de arrumação e de muito mais, pela exigência de um estilo de vida Zen, não nego. Mas julgá-la por essas lacunas é aplicar um critério que coloca a tão admirada casa Vanna Venturi ao lado da maioria dos prédios da Reboleira. *Também há quem critica os retratos de Picasso para não servir para o B.I.... 3.3.04
Conhecem a Lei de Hofstaedter? Lei de Hofstaedter: Tudo demora um pouco mais tempo do que previsto, mesmo tendo em conta a lei de Hofstaedter. Se não me engano, encontrei a neste livro e não neste. De qualquer maneira, ambos são muito recomendáveis! Quando nada tens a dizer sempre podes dizer que nada tens a dizer e reflectir sobre a auto-referencialidade (...traduz-se assim self-referentiality?) desta constatação. O que não deixa de ser um truque barato, mesmo quando dizes que nao deixa de ser um truque barato. (Um pouco mais a sério: Não me falta assunto. Falta-me tempo e energia para o desenvolver.) Como tem razão o David Bengelsdorff. O trabalho, a falta de tempo e dinheiro, as lutas do dia a dia tendem a ocultá-lo, mas tenho poucas dúvidas: Nunca mais serei tão feliz como agora, com as crianças pequenas... Playmate da semana: Baigneuse (Degas) 2.3.04
O Google já manda as pessoas para o Quase em Português que procuram meninas giras. Bem vindos! Esta noite vou postar mais uma. ...de Kant: "Em todas as épocas, e sem conceder alguma atenção às disposições para o bem na natureza humana, sábios (ou filósofos) presunçosos se têm esforçado em parábolas repugnantes, em parte nojentes, para apresentar o nosso mundo terreo, a existência do homem, como muito desprezível. 1) Como tasca (caravansarai), como a entendeu aquele dervis; onde qualquer hóspede, que aqui faz escala na sua viágem da vida, deve estar preparado para ser rapidamente desalojado pelo seguinte. 2) Como penitenciâria; o que é a opinião para qual se inclinam os brâmanes, os tibetanos e outros sábios do oriente (e até Platão): um lugar de castigo e purificação de almas caidas, expulsas do ceu, agora almas humanas ou de animais. 3) Como manicómio: onde não só cada um por si estraga os seus planos, mas também um ao outro inflige todo o sofrimento de coração, e ainda entende a habilidade e o poder de o fazer como a maior honra. E finalmente 4) Como esgoto, para onde é transferido toda a imundice de outros mundos. Esta última ideia e de certo modo original, e devido a um engraçado persa, que colocou o paraíso, o lugar de residência do primeiro casal de homens, no ceu, em cujo jardim cresceram arvores bastantes, dotadas com frutos maravilhosos em abundância, cuja sobra, após a sua ingestão, se perdia em evaporações imperceptíveis; excepto uma única árvore no meio do jardim, que carregou uma fruta embora atraente, mas de tal característica, que ela não saia por transpiração. Como os nossos pais, apesar da proibição, acabaram de provar dela: Assim não houve, para que eles não sujassem o céu, outro remédio, a não ser que um anjo lhes mostrou a terra longinqua, com as palavras: "Isto é a retrete de todo o universo", os para lá conduziu, para que eles se aliviarem, e voltou, deixando eles mesmos para trás, para o ceu. Daí originou a espécie humana na terra." (Em Immanuel Kant: O fim de todas as coisas) (Bem, o alemão de Kant traduzido por mim em português, é mesmo um monstro... Mas a culpa é de Kant!) 1.3.04
No ENE COISAS está a decorrer um concurso de literatura para blogues. Data límite de entrega é o dia 15 de Março. (Ainda não submeti nenhuma história, mas em princípio vou concorrer. Já verifiquei que não há nenhuma pré-qualificação relativamente ao domínio do português...) |
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