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29.4.07
Histórias passadas. Desta vez, L. ia entrar em Marrocos via Ceuta, aquele enclave espanhol no continente africano, e de carro. Vinha com os filhos, com cartão de crédito, telemóvel, e ao encontro com amigos que já teriam arranjado estadia para todos em Chefchaouen, quando lá chegava. Seria um turista sem ambição de ser outra coisa. Não estava interessado em comprar haxixe, e estava longe da falta de juízo e cautela que, na altura, só por sorte não tinha dado mau resultado. Tinha conseguido apanhar o barco a horas, e não contava com mais problemas. Mas quando o primeiro marroquino lhe bateu à janela, acenando com papeis, sentiu o velho reflexo de raiva e desprezo. Não tinha estado a espera. Devia, obviamente, mas não tinha pensado nisto. O que queria este? Pelos vistos, queria ajudar a preencher formulários, o que, de facto, seriam provavelmente necessários de preencher. L. não parou, continuava em passo de caracol, obrigando o homem a correr ao lado do carro. Era um indivíduo de talvez vinte e cinco anos, vestido de modo ocidental, mas muito sujo. Qualquer arrumador de Lisboa faria melhor figura. E o papel que agitava tinha ar de já ter sido tirado do bolso muitas vezes, vincado e com as margens em franjas. Se seria preciso recorrer aos serviços dum destes tipos, seguramente não eram as deste. L. acelerou um pouco, para deixar o homem para trás. Porém, ao aproximar-se da fronteira, ficou claro que aquele só tinha sido o primeiro, o mais desesperado membro dum bando de assediadores, que pairava sobre as filas de viajantes, pronto para atacar qualquer turista que dava algum sinal de desorientação. L. tinha de escolher entre várias faixas de rodagem, separadas por rails, e como não havia sinalização que se compreendia, optou por uma que lhe parecia mais livre. Logo vários dos homens começavam aos gritos e a sinalizar-lhe que fez mal. L. ignorou-os, mas parou quando um agente da autoridade o mandou, com gestos enérgicos, encostar o carro. Contrariado, avaliou a situação. As filas à frente da pala que marcava a fronteira, e debaixo da qual se encontravam as barracas onde se tratava das formalidades, não se distinguiam entre elas. Não se vislumbrava uma ordem. Alguns carros pareciam estacionados, outros só parados, com pessoas lá dentro, enquanto os seus condutores estavam à frente das barracas, a tratar da papelada. De vez em quando, um ou outro voltou e um carro atravessou a fronteira. Só pontualmente via-se, deste lado da pala, um representante da autoridade. Impossível saber a quem havia de solicitar informação sobre o procedimento a seguir, ou as fichas que havia de preencher. Senão aos mediadores. L. começou a perceber. Apesar da aparente lógica arquitectónica que sugeria que o atravessamento da fronteira se processasse em paralelo e de forma igual para cada faixa, à semelhança duma estação de portagem, o sistema praticado não correspondia a isso. Este seguia ainda ao modelo antigo, em que cada viajante tinha de deixar o carro algures, e de se deslocar às diversas entidades para solicitar os necessários papeis, carimbos e vistorias. Compreendeu o princípio, que conhecia de outras experiências passadas. Mas como não sabia quais os procedimentos requeridos e qual a sua sequência, não podia resolver o assunto sem mediador. O guarda que o mandara encostar não falava francês, nem espanhol nem inglês. Não falou de todo, em boa verdade. Não mostrou nenhuma inclinação de lhe explicar o que fizera mal. Mas parecia satisfeito, por enquanto, com ter parado o carro de L. e dirigiu-se para outros lados. Entretanto, vários mediadores competiam para obter a atenção de L.. Este tinha-se apercebido que o bando dos mediadores não era uniforme. Havia uns que aparentavam maior autoridade, um estatuto superior. Não corriam atrás dos carros, deambularam, pelo contrário, com lentidão ostensiva entre eles, escolhendo, se o seu conselho de momento não foi procurado por membros inferiores da sua ordem, de forma discricionária a quem dedicavam a sua atenção. Se os vulgares mediadores eram os frades ao serviço da divindade da burocracia da fronteira, estes eram os seus sacerdotes. L. dirigiu-se a um destes, ignorando todas as outras tentativas de o abordarem. O homem explicou-lhe, em espanhol, que se encontrava de facto numa fila reservada para marroquinos que regressavam duma visita só à Ceuta, sem terem deixado Africa. Mas acrescentou, após um olhar para o guarda que se afastava, que, por excepção, poderia deixar o carro no lugar onde estava. Se tinha os formulários de entrada preenchidos? Não tinha. O guia de turismo – assim o identificava um crachá aparentemente oficial – deu-lhe cinco fotocópias em bastante bom estado, e fez-lhe sinal de as preencher. Depois de lhe avisar que quando pronto ir ter com ele, retomou as suas deambulações. O porte aristocrático com que vestia o cafetão vermelho escuro compensava quase, ao longe, a discutível limpeza deste vestimento, tal como o fez e a expressão severa da cara debaixo deste quase permitiam pensar que pertencessem a um senhor. Só os traços derrocados, a pele avermelhada e inchada levaram L. a perguntar-se se este senhor não teria, nos seus cinquenta anos, já se rendido em demasia ao álcool que se vendia em Ceuta. Depois de preenchido os formulários, no chão – a esferográfica tinha se recusado a funcionar na parede –, meteu-se na fila à frente do barracão que o guia lhe tinha indicado. A janela dava para a faixa de rodagem, que estava ocupada por pessoas. Metade delas eram mediadores, e L. ficou com a impressão que foi várias vezes defraudado do seu lugar na fila, mas não reclamou porque admitia que os outros só voltaram para concluir um processo em curso. Ao esperar pela sua vez, enquanto o funcionário fardado na barraca digitava, com o dedo indicador direito, o conteúdo das fichas dos viajantes no computador, L. contemplava a chávena de café que poisava em cima duma pilha de impressos na mesa, e interrogava-se se o homem ainda a ia beber. O líquido repugnante, preto e opaco, seguramente frio, parecia lá estar já desde há dias, e a chávena, tal como o pires grosso, aparentavam estar de tal maneira impregnados com os restos de outros cafés das semanas, meses e anos anteriores, que nem mesmo uma improvável limpeza mais rigorosa, uma lavagem com água a ferver, já os tiraria. Chegou a sua vez. O funcionário tomou realmente um golo da chávena de café, e aceitou os papeis de L.. Separou os passaportes das fichas, e começou a folheá-los com calma rotineira, interessando-se pelos vistos de outras viagens neles contidos. Introduziu os dados no computador, carimbou fichas e passaportes com um número e devolveu-lhe tudo. Quando lhe fez sinal para se ir embora, ainda não lhe tinha olhado uma vez nos olhos. Na barraca seguinte havia uma mulher, a quem L. entregou os documentos do automóvel e o correspondente formulário, o que esta lhe logo devolveu, para preencher novamente o triplicado, que não estava suficientemente bem legível. No preciso momento em que L. o tinha feito e lho quis entregar, a mulher fechou a janela a sua frente e saiu. Voltou depois de quinze minutos. Então recebeu os papéis e fez-lhe, com um tom de cerimónia cínica, só uma pergunta. Se o carro era a sua propriedade. - Da sua empresa –, respondeu L.. A mulher disse nada, escrevinhou algo em árabe no verso do triplicado, deu-lho, e mandou-o embora. O próximo guichet? Outra vez foi necessário consultar o sacerdote. O homem no próximo guichet tinha um ar mais simpático. Mas ao ler a nota no verso do papel do carro, fez uma cara preocupada e disse a L. que havia um problema sério. A nota que a mulher escrevera dizia que a entrada do automóvel estava recusada, pois o viajante não era o seu proprietário. L. pegou nos seus papéis e procurou o seu guia. Este explicou-lhe que o problema seria mesmo real, mas que arranjava solução. Chamou um outro colega, também com cafetão e identificação de guia oficial, que seria a pessoa indicada para resolver esse tipo de problemas. Havia de obter-se uma autorização excepcional do chefe da alfândega, baseado no facto de que o nome de L. constava no nome da empresa proprietária do carro, e baseado nas suas, do guia, boas relações com este funcionário. – Depois, quando está resolvido, não se esqueça de mim. – Claro que não. Curiosamente, a partir deste instante, qualquer nervosismo e raiva abandonaram o L. Porquê? Não sabia, mas talvez era esta a razão: Tinha mudado de estatuto. Não era mais um simples e honesto turista, vítima de assédio injusto, mas um viajante com uma irregularidade objectiva nos documentos, para cuja solução precisava de se servir do sistema corrupto. A relação era agora uma de negócios entre iguais. Isso permitia-lhe ver então com clareza e descontracção o que iria acontecer a seguir. O guia iria convencer o chefe da alfândega para resolver o problema. Isso iria demorar algum tempo, para que não se subestimasse a dificuldade e para valorizar a recompensa. No fim, L. pagaria ao guia, e este faria, em devida altura, contas com o chefe. L. já não duvidava que o seu caso estava em boas mãos. O novo guia, de cafetão azul, mandou L. aguardar e deslocou-se sozinho para o edifício da alfândega, de que voltou de mãos vazias. Tinham de esperar. Dez minutos mais tarde o chefe saiu, mas só para se ocupar do caso dum outro viajante, com a devida exaustão, e com várias interrupções, em que o chefe se deslocou para outras bandas, em afazeres inconcebíveis ao L., mas seguramente igualmente importantes. Quando voltou, o guia retomou as tentativas de abordá-lo, fazendo a L. sinais discretos com a mão, ora de aproximar-se, ora de afastar-se, a procura da justa medida para chamar a atenção do chefe, mas sem lhe faltar o devido respeito ou até irritar o homem com uma atitude demasiado impertinente. Finalmente o chefe dignou-se de ouvir a explicação, pela boca do guia, do caso de L. Acenou pensativamente uma ou duas vezes a cabeça, o que era bom sinal. E foi se embora. Mas quando voltou desta vez, e depois de mais uma aproximação deferente e bem sucedida por L. e o seu guia, o chefe fez realmente um rabisco no papel com a nota da mulher desagradável. A partir daí foi tudo fácil. Voltar ao contentor do homem simpático, esperar a sua vez, mostrar o rabisco e receber os carimbos da imigração nos passaportes. Satisfeito, L. tirou a carteira, mas o guia disse rapidamente, – Aqui não! Entre primeiro no seu carro! – No carro L. abriu a carteira e procurou uma nota de dez euros. – Dê-me uma nota de vinte, e está bem! - disse o guia. L. deu-lhe uma nota de vinte e quis arrancar. Apareceu o primeiro guia, a reclamar também o seu honorário, mas L. respondeu que se entendesse com o seu colega, e arrancou mesmo. A seguir à pala ainda foram mandados parar mais uma vez, para uma revista à bagageira. Um pró-forma. Depois entravam na via rápida em direcção a Tetouan. 28.4.07
Frau auf Gartenbank (Georg Schrimpf) Obrigado ao David Luz por ter-me nomeado para um Thinking Blogger Award! Estou receptivo e genuinamente grato pelo apreço, que é recíproco, como ele sabe, mas tal como o próprio David, não muito a vontade com esta iniciativa, que só é mais uma chainletter. Os blogues que aprecio encontram-se na lista aqui ao lado, e quando um me merece especial destáque por algum post ou uma qualidade específica, como a de fazer pensar, prefiro dizê-lo por iniciativa e em termos próprios. 27.4.07
A Helena perguntou-me se tinha feito, como homem em Marrocos, experiências com assédio sexual. Com a sua habitual candura acrescentou que a questão a interessa muito, e por isso vou interromper a minha série sobre Marrocos e responder, antes de voltar às minhas histórias mais chatas que, aviso desde já, não mais meterão sexo. Claro que sei que o interesse da Helena só tem motivos nobres. Honni soit que mal y pense! Para além de uma saudável curiosidade sociológica e antropológica, a muito compreensível sede feminina de justiça: Não seria bom se os homens, normalmente autores do assédio, sentissem na própria pele como é ser o seu alvo? A resposta é não, em Marrocos nunca fui alvo de assédio sexual. Que não fui este ano, compreende-se. Mas também não, quando tinha vinte anos. Possivelmente, na altura, porque viajava com um amigo da mesma idade. Mas tenho uma história que me aconteceu em Paquistão, na minha viagem overland to India. Imaginem um rapaz de 18 anos, mais ou menos como o meu filho Frederico hoje, no cartaz que postei há dias. Depois de um mês relativamente descontraído em Afeganistão, porque na companhia de três simpáticos suíços, encontrava-me de novo sozinho, agora em Paquistão, no comboio de Peshawar a Lahore. Uma viagem de dia e meio. Mais precisamente, de noite e meia, porque essas viagens de grande distância por boas razões costumavam fazer-se à noite. Em vez de uma couchette na terceira classe, só tinha conseguido marcar um lugar sentado, na segunda, numa carruagem sem compartimentos que tinha uma disposição um pouco inusitada. Tinha, para além dos bancos organizados de forma convencional num lado, ainda uma fila de lugar único, entre o corredor e a janela. Era aí onde estava o meu assento, o que julgava bastante melhor do que partilhar um banco com paquistaneses numa carruagem apinhada de gente. Pois não tardava e todo o chão entre os bancos, inclusive o corredor, estava coberto de malas, sacos de viagem, e de colchões dobráveis que pareciam fazer parte da bagagem habitual das pessoas, de forma que se criou quase um plano contínuo ao nível dos assentos. E em cima deste, instalaram-se os seus donos, os passageiros que não tinham lugares marcados. No meio desta confusão achava-me bastante bem servido, entalado, sim, mas seguro do meu lugar e até com possibilidade de colocar os pés no chão, se o quisesse. Já estávamos em viagem há algumas horas, e o ruído das conversas animadas tinha cedido a um silêncio sonolento, deixando sobressair o rítmico “claque, claque” dos carris. Ao meu lado havia-se deitado um avozinho, de longa barba grisalha, em vestes tradicionais, no seu conjunto de haveres. Também eu tinha passado pelas brasas, quando acordei por alguma razão e reparei que a mão do velho, que estava deitado de lado, aparentemente a dormir, repousava com naturalidade na minha coxa. Incomodado, mexi-me. Mas a mão ficou onde estava. Agora estava imóvel e mole, mas entretanto fiquei acordado o suficiente para ter a certeza que antes isso não tinha sido assim, e que os dedos tinham estado bem vivos. Aliás, havia sinais físicos no meu próprio corpo que me indicavam que isso tinha sido, de facto, o caso. Olhei a volta. Mais ao fundo, duas senhoras estavam a conversar, aos sussurros, de resto toda a gente parecia estar a dormir. Mexi-me outra vez, de novo sem efeito. Então peguei na mão, com algum cuidado, e pousei-a fora. Mudei a minha posição. Levantei o joelho, apoiando o meu pé no banco de frente, com o fim de impedir que a mão voltasse a “cair” na minha coxa, e tambem para aliviar uma certa pressão nas minhas calças. Resultou por algum tempo. Mas então o velho, como no sono, virou-se, com o resultado de que agora já não era a sua mão direita que pousava em cima da minha perna, mas a sua mão esquerda se encostou por baixo da coxa, tocando com os dedos no meu escroto. Com um gesto enérgico, e um palavrão abafado, sentei-me direito, entalando a mão com força na cadeira. O homem retirou-a, e fixou-me por um momento de olhos entreabertos. Apeteceu-me de lhe dar um pontapé, mas nem de mandar vir abertamente me atrevi, pois senti-me sozinho, o único viajante ocidental nesta carruagem. Não preguei mais olho esta noite. Mantive-me, o máximo possível encostado à janela, vigilante que não fosse alvo de um novo ataque dos dedos exploradores do meu vizinho. Quando saí em Lahore, tinha aprendido uma coisa: Jamais vestiria aqui calções, muito menos calções apertados de ganga. _________________ Não seria inteiramente verdade se dissesse que foi nessa viagem que pela primeira vez me apercebi de mim como objecto de desejo homossexual, mas se acrescento, que foi pela primeira vez de uma forma consistente, generalizada, então é. Pois a história que contei, talvez foi a mais explícita, e incómoda pela impossibilidade de me subtraír à situação, mas não foi a única. Pode ter ajudado o meu aspecto de então, e o exótismo que este para os indígenos deve ter compreendido. Mas creio que não é só isso. Nestes países islâmicos, em que as mulheres, e tudo que nelas possa ser erotizante, é subtraído à percepção quotidiana do homem solteiro, a energia sexual naturalmente procura alvos que estão mais a mão. Quem diz energia sexual diz carinho: Como me espantou ver nestes paises de extremo pudor sexual, e onde a homossexualidade é um pecado ameaçado com pena de morte, em todo o lado "casais" de amigos, rapazes ou homens com vinte ou vinte e cinco anos, de mãos dadas como amantes, a tocarem-se em público com indisfarçada ternura! Que, onde não há rapariga apetitosa que se veja, o desejo também dos mais velhos se vira para rapazes apetitosos, para onde se pode vêr e tocar alguma pele nua, e - se calhar - algo mais, parece-me só natural. 26.4.07
Ontem apaguei um post, depois de dez minutos, em que linkei uma evocação amarga de João Távora ao 25 de Abril e destaquei a excelente resposta de José Luís Malaquias nos comentários ao mesmo. Fi-lo porque acabei de achar que, como único post a respeito deste dia histórico, não seria adequado destacar a mesquinhez de alguém que, depois de 33 anos, ainda se sente vitimizado e injustiçado. Mas entretanto acho que fiz mal. As confissões de ressentimento, daqueles que perderam no 25 de Abril, merecem comentário. Li agora, pela pena de outro autor do Corta-fitas, o seguinte: «O 25 de Abril trouxe a democracia a Portugal, depois de uma luta dos verdadeiros democratas que só foi vencida a 25 de Novembro de 1975, mas também muito ódio, que perdura até hoje, 33 anos passados. Ódios de classe, ódio a quem triunfa, a quem consegue viver melhor, a quem se destaca de um nivelamento por baixo.» Parece que o Duarte Calvão acha que foi o 25 de Abril que gerou o ódio, e não o regime que foi derrubado por ele. E quer fazer-nos crer que quem beneficiou da ditadura, beneficiou dela por mérito, porque triunfou, e que o “nivelamento por baixo” fosse algo que caracterizasse a sociedade que se seguiu à revolução, em contraste à anterior. Como o contrário não fosse evidente: que a imobilidade social, o impedimento de iniciativa, o provincianismo e o baixo nível de instrução foram características intrínsecas do regime derrubado, e que, apesar de todas as deficiências da sociedade actual, a um português de hoje com iniciativa o mundo está incomparavelmente mais aberto. É preciso ser-se muito cego, ou hipócrita, para não ver isso. E descarado, para tentar vender-nos o privilégio, que porventura perdeu - ou quase perdeu - como mérito. Há 70 anos, os alemães bombardearam Guernika, a pedido de Franco. Hoje, outros bombardeiam DARFUR. Talvez um dia ainda hei de perder a insegurança no uso dos tempos: pretérito imperfeito, pretérito perfeito, pretérito mais que perfeito. 25.4.07
L. já tinha feito a travessia uma vez, há 27 anos. A viagem tinha demorado muito mais, por ter sido num barco tradicional, e para Tanger. Na altura, não tinha viajado nem de carro, nem com filhos, mas como turista de mochila, com um amigo. Lembrou-se da recepção em Tanger que, apesar de se ter julgado preparado, tinha sido um choque. Depois das formalidades da alfândega, caíra-lhes em cima uma matilha de assediadores, que ofereciam aos recém-chegados serviço de táxi, para encaminhá-los a hotéis e pensões alegadamente bons e económicos, visitas guiadas que, como sabiam, invariavelmente acabariam em lojas, e, naturalmente, haxixe. Mas no barco tinham ouvido falar dum campismo bom, barato e vigiado, e se juntado a um grupo que se decidira lá ir, a pé. Assim, as coisas azedaram rapidamente. A caminhada fora de vários quilómetros, com as mochilas nas costas. Durante todo o percurso, até ao portão do campismo, os assediadores tinham-nos acompanhado e tentado a levá-los a desistir, ou se não isso, pelo menos a combinar desde já visitas à Medina, e de vender-lhes droga, que lhes acenaram, incessantemente, a frente do nariz. Todos recusaram, educadamente primeiro, mas depois com crescente falta de paciência, e quando L., no fim, os mandara bugiar, com indisfarçada agressividade, recebera uma resposta abertamente hóstil: “racista”, chamara-lhe um vendedor, e prometera-lhe de lhe fazer uma espera, se se atrevesse vir à Medina, atravessando significativamente a goela com o dedo indicador. O campismo fora mesmo bom, um oásis agradável, realmente vedado com arame farpado, e vigiado. O haxixe, que prudentemente não tinha comprado na rua, acabara de adquirir a um holandês que lhes se introduzira ao pé da sua tenda. O homem fora pouco mais velho que eles, mas viram logo que se orientava bem. Não morava no campismo, tinha um apartamento, e deixara de entender sem rodeios que vivia do tráfico. Se isso não seria perigoso? Pois seria, mas só para quem não tinha cuidado. Por exemplo, ele tinha livre acesso ao campismo, por uma modesta avença que dava ao gerente, e por ser europeu, sob a condição que cumpria religiosamente, a de nunca vender nada no campismo e nunca andar com haxixe no bolso. Por essa razão convidara-os, para fechar o negócio, a acompanharem-no ao seu apartamento. Foram com ele e acabaram por comprar uma bom piece. Enquanto esperaram na sala pelo anfitrião, que foi buscar a mercadoria ao esconderijo, saira do quarto uma rapariga lindíssima, seminua. Esboçou um aceno, e sentou-se à mesa da kitchenete. Não parecia minimamente incomodada. Quando o holandês voltou, fez um gesto com a mão, uma ordem breve, e a rapariga voltou a retirar-se ao quarto. - A tua namorada? - Não, - disse o holandês, em tom casual - uma puta. Pago para tê-la em casa. L., que nunca tinha estado na mesma sala com uma puta, muito menos com uma tão jovem e tão atraente, compreendera neste instante como aliciantes eram os prazeres que o dinheiro e a falta de escrúpulos reservavam, e perguntara-se a si próprio, se a sua repulsa, que também sentia, era mais fruto da sua moral ou simplesmente cobardia. Ainda jantaram com o holandês, longe da confusão da Medina, num restaurante em estilo colonial, na encosta, com uma maravilhosa vista sobre o mar. L. imaginara que na mesma mesa já se sentaram Paul Bowles e William Burroughs, servidos por rapazes diligentes, a fazer nenhum, além de fumar ópio, ou charros, como eles, confortavelmente instalados em cadeiras de verga, nesta esplanada branca acima da assombrosa baía de Tanger. No dia seguinte, no campismo, acabaram por confirmar o que já lhes tinha parecido no apartamento, mas não lhes tinha apetecido discutir: que compraram o haxixe pelo dobro do preço do que se tivessem comprado aos marroquinos, na Medina. Isto aborecera L., porque tinha o dinheiro das férias contado, e a ideia de que era o preço de comprar a quem dava confiança, só o consolara pouco. Procurara não pensar mais nisso. The joyous spirit (Gary Baseman) 24.4.07
No porto de Algeciras, enquanto os camionistas manobravam com habilidade rotineira os seus contentores para o porão do ferry, L. saiu do carro, para mostrar ao filho mais novo o barco. Do automóvel a sua frente, as pessoas tinham saído também. Era um jipe preto da BMW, novo em folha e, pelos vistos, acabado de ser lavado. O seu dono encostava-se a porta e esvaziava, em tragos grandes, uma lata de Heineken. (Em Marrocos vigora a proibição.) No lado direito, estavam duas senhoras elegantíssimas, seguramente esposa e filha, de grandes óculos de sol, e com as suas cabeleiras tão pretas e reluzentes como o verniz do carro. A mãe verificava no retrovisor lateral a maquilhagem, a filha, em casaco e calças pretas justas, que cumpriam os requisitos de não mostrar a pele mas deram uma perfeita noção do que cobriam, oferecia um sorriso simpático ao menino de L.. Marroquinos ricos, ao voltar dum trip à Europa. O barco era uma lancha rápida, de dois cascos, como as da Transtejo, mas muito maior. Ao aproximarem-se do limite do cais, para ver como onde noutros barcos estavam os hélices, havia turbinas, o menino pegou-lhe na mão. L. compreendeu, o barco era imponente. Viam as turbinas, turbinas tão potentes que iriam fazer a travessia para Ceuta, que antes demorava horas, em trinta e cinco minutos. No outro lado da baía - não do Estreito - via-se Gibraltar. A cidade, composta por prédios modernos, cobria a parte inferior da encosta da famosa rocha que se erguia, verdadeiramente singular, nesta estreita planície sem graça ao sopé da Serra da Ronda. Um gigantesco gato cinzento, meio na água, meio em terra. Justamente famoso, mas belo não. Um marco num local que, de resto, não tem nada para oferecer excepto a sua condição geográfica: o ponto em que Europa e Africa se aproximam até a escassos trinta quilómetros; também o ponto onde termina o Mediterrâneo e começa o Atlântico. Onde, na antiguidade, lembrava-se L., acabava o mundo conhecido e começava o imenso desconhecido. Ainda hoje, a especialidade do lugar confirmava-se não só pelos ferrys, que fizeram a carreira entre dois continentes, como pelos muitos cargueiros e porta-contentores que, sós ou em grupos de dois ou três, ancoravam na baía, fazendo uma escala incontornável. L. sentia aquela excitação agradável, a agudização dos sentidos, que se apodera do viajante em portos, estações de comboio e também, embora em menor grau, em aeroportos. Aliás, não só do viajante. Mesmo a quem não embarca, estes lugares, a presença de quem veio de longe ou vai para longe, dá uma sensação de liberdade, lembra-lhe que a vida é, pelo menos para alguns, feita de oportunidades. A Africa, tão perto, porém não se via. Estava encoberta pelas brumas que, como era frequente, limitavam a visibilidade no Estreito. Enquanto aqui em terra o sol suave da primavera banhava o cais, as gruas, os carros e as pessoas, lá fora viam-se cristas nas ondas, sinal do vento forte e implacável que aí soprava, e lembravam que o Estreito era nenhum Tejo. Era o mar. Respondendo a um desafio de amigos, vou postar nos próximos dias uma pequena série de posts que tem a sua origem nas minhas recentes mini-férias em Marrocos, e que se pretende formarem um conjunto. Como sou muito lento a escrever, especialmente sobre assuntos ainda não muito do passado, e não quero deixar o QeP parado por mais dias, começo a postar já o primeiro, embora ainda falte terminar outros. O primeiro, que se segue, chama-se Algeciras. Tenho hesitado de assinar o Manifesto: Israel y la defensa del progreso democrático en España", não porque não concordasse com a defesa de Israel, e não porque não partilhasse as razões enunciadas. Só me fui difícil de juntar-me (fi-lo) a quem fala tão explicitamente em nome da esquerda, e da esquerda espanhola. De facto, nunca fui capaz de falar a não ser em meu nome, só... 21.4.07
Estudantes da Virginia Tech tentam salvar professor. Nunca nutri simpatia por este partido, mas aqui estou de acordo com o João Tavora: O CDS não necessita de chegar ao poder a qualquer custo. Necessita sim de quem não necessite dele,[...] Etiquetas: idealismo, ingenuidade militante 19.4.07
Ottos Mops trotzt Otto: fort Mops fort Ottos Mops hopst fort Otto: soso Otto holt Koks Otto holt Obst Otto horcht Otto: Mops Mops Otto hofft Ottos Mops klopft Otto: komm Mops komm Ottos Mops kommt Ottos Mops kotzt Otto: ogottogott Ernst Jandl Ajuda para a tradução do alemão: Otto - nome próprio; Mops - doguezinho; trotzt - teima; fort - fora; hopst - pula; soso - poispois; holt - busca; Koks - coque; Obst - fruta; horcht - escuta; hofft - espera; klopft - bate; komm - vem!; kommt - vem; kotzt - vomita; ogottogott - meudeusmeudeus Os rapazes da fotografia no post Porajmos estão mortos, há muito tempo. Sufocados e envenenados nas câmaras de gás de Belzec. As crianças na imagem em cima ainda não. Para que estas e outras, que, ao contrário de 300.000 crianças, mulheres e homens já mortos no genocídio em curso, em Darfur, sejam salvos, podemos fazer algo. Devemos. A resposta à questão "What can I do" encontra-se aqui. (Obrigado pelo lembrete no Kontratempos!) Etiquetas: cidadania 18.4.07
Quando ouvi a notícia como morreu Liviu Librescu, aos 76 anos, e depois de que vida, pensei o mesmo que o Jansenista: A good way to go. "A forma como os nazis se encenaram e presentaram, meus senhores! Falo dos filmes de Leni Riefenstahl e dos edifícios de Albert Speer e das marchas de massas e das bandeiras - simplesmente fantástico. Realmente belo."* Como noticia o DN, na segunda-feira, Bryan Ferry teve de apresentar desculpas e retractar-se publicamente por aquelas declarações, após se ter abatido sobre ele a reprovação dos principais líderes da comunidade judaica na Grã-Bretanha. Teve? Mas por que raio? - Consta que o fez porque as comunidades judaicas britânicas lhe cairam em cima e pediram, entre outro, à Marks&Spencer de lhe cancelar o contrato de publicidade. Se o Bryan Ferry tivesse um pouco mais tomates, não teria pedido desculpas mas apresentado queixa contra quem exigiu isso. Não sei se existe na Inglaterra uma lei que proíbe pressionar empresas para cancelar contratos com terceiros, por delito de opinião. Mas devia existir. Os líderes das comunidades judaicas deviam mas é preocupar-se com o antisemitismo. Para começar, recomendo eu, por exemplo não se pondo a jeito com exigências arrogantes e despropositadas. (* Traduzido daqui) Etiquetas: antisemitismo Chiara (Roberto Baldazzini) 17.4.07
Sobre o proposto código de conduta para blogues
Se é uma recomendação, agradeço mas dispenso. O que recebi de boa educação para a vida real, tem-me servido bem aqui também. Se é uma pretensão de obrigação, vão bugiar! Se este homem não fala de Deus..., então não sei. (É preciso investir um pouco tempo para ver os vídeos, mas vale a pena!) 16.4.07
Sabe o que essa palavra significa? - Não? - É o nome que os ciganos deram ao que lhes aconteceu na Alemanha nazi. Ou seja, é a sua palavra para o Holocausto. Famílias Roma à chegada no campo de extermínio Belzec Para além dos ca. de 6 milhões de judeus, foram assassinados entre 200.000 e 800.000 Sinti, Roma e Jenischen, povos ciganos, o que significa o seu quase extermínio: nos territórios sob o poder nazi, a taxa de sobrevivência era inferior a 25%. Não se sabe o número dos mortos com maior exactidão, porque, ao contrário dos judeus, não dispunham de registos da sua população para permitir uma estimativa rigorosa. Faltou-lhes - e ainda hoje falta-lhes - também um lobby poderoso para insistir no seu inegável direito a que lhes seja reconhecido, à semelhança dos judeus, serem vítimas deste crime incomparável. Só pouco a pouco, na Alemanha, isto acontece, mas duvido que uma vez chegarão ao ponto equiparável aos judeus. O extermínio dos ciganos, na prática em tudo igual - os mesmos campos, as mesmas câmaras de gás, a mesma desumanidade contra homens, mulheres e crianças, o mesmo objectivo último dos seus assassinos, o seu extermínio total, obviamente não diminui o que foi feito aos judeus. Por isso não compreendo, e não tenho paciência para discussões mesquinhas, que infelizmente existem, sobre se o Porajmos é ou não é equiparável ao Holocausto. É. No dia de recordar o Holocausto (que era ontem), pareceu-me bem colocar - desta vez - o reâlce nas outras vítimas, nos ciganos, sem esquecer os homossexuais, os Testemunhas de Jeová, e os comunistas. Sobre o Porajmos: Porajmos (Wikipedia); Historical Amnesia: The Romani Holocaust; A brief romani chronology of the Holocaust; Sobre a palavra Porajmos; Jewish responses to the Porajmos Etiquetas: antisemitismo (Marcel Dzama) 15.4.07
Num país em que qualquer pessoa minimamente apta para vingar na vida cumpriu com êxito uma educação para a pequena é média aldrabice, a reclamação de pureza moral dum Primeiro Ministro é ou altamente ingénua, ou hipócrita, e na actual ausência completa de alternativa somente nocivo para o país. Bem gostava que fosse diferente, que servisse de forma igual qualquer oportunidade para iniciar a necessária moralização da sociedade, mas já não tenho idade nem paciência para assistir a que só será mais um exercício fútil (tirando os ganhos tácticos dum ou doutro partido) de exploração da discrepância insuperável entre o ser e o dever ser. Adenda: E assumo-me como tão velho que só consigo sorrir sobre quem neste caso vê (teme? anseia por?) o fim do regime. José Pacheco Pereira diz no seu artigo sobre os outdoors do PNR e dos Gatos Fedorentos uma série de coisas pertinentes: Como a que ambos tiveram o seu impacto não directamente como outdoors, mas por intermédio da comunicação social; que o do PNR foi o maior sucesso, levando em conta o ponto de partida, em termos de poder mediático de quem os colocou; que o do PNR é o subversivo e o dos Gatos do “mainstream”; que o cartaz dos Gatos exprime o que muitas pessoas acham dever pensar, mas não sentem, ao contrário do do PNR, que diz o que muitos sentem, mas não ousam pensar, ou pensam, mas não ousam dizer; e que, neste contexto, a foto do cartaz limpinho dos Gatos ao lado do vandalizado do PNR permitiu a este de ser visto como vítima sincera, impedido de exprimir a sua opinião. Mas JPP não seria JPP, se não depois tentasse, como político da direita que é, menorizar os Gatos, cujo sucesso comunicacional, de esquerda embora não partidariamente comprometido, entende dever combater. O argumento seria hábil, se não fosse tão velho, tão velho e descredibilizado que não acredito que o próprio JPP acredita nele. (Ou nunca teria ouvido falar de Brecht, por exemplo.) Mas isso não o impede aplicá-lo, apostando, provavelmente com razão, que isso não elimina a sua eficácia. O argumento é o da incompatibilidade da arte com a propaganda política. Embrulha-o numa advertência: "Ora vocês são bons artistas, mas se põe a vossa arte ao serviço da política, rapidamente deixarão de sê-lo." Nas suas palavras isso soa assim: «O problema não está, como é óbvio, no facto de os Gatos Fedorentos, enquanto grupo de humoristas, fazerem política pura e dura, em pleno espaço público. Nem sequer penso ser comparável o acto de fazer este cartaz com os sketches que foram criticados como "políticos" na última campanha referendária sobre o aborto. Só que a intervenção dos Gatos Fedorentos será agora julgada pela sua eficácia política e não pelo riso que provoque. Este palco suplementar implica um risco acrescido de trivialização da imagem do grupo, acentuada igualmente pelo peso da publicidade, multiplicando actos de humor sucessivos que, a uma dada altura, tem uma pérola de humor para dez pedras de meia graça esforçada. Foi este caminho que levou esse outro humorista genial, Herman José, à crise actual.» A profecia de que a intervenção dos Gatos Fedorentos seria a partir de agora julgada pela sua eficácia política e não pelo riso que provoque, é um disparate óbvio, e à do seu declínio artístico, à semelhança do Herman, apetece responder: “Isso querias tu...” 14.4.07
(Declaração de interesse: O autor da seguinte crítica é pai dum dos actores.) Peça de Teatro, Grupo Ditas Cálias Representação: Francisco Marcus, Maria Inês, Frederico Brückelmann - Argumento: Francisco Marcus – Encenação: Guilherme de Bernardo, Fábio Simões, Maria Inês, Mafalda Quintela – Imagem: Bruno Alves Apoios: Escola Secundária de Camões, A.E. Secundária de Camões Dois e um meio é uma odisseia de dois companheiros de ocasião através dum dia banal. Um homem de negócios, que está bem na vida - encarnado com precisão por Francisco Marcus - encontra, ou melhor: é encontrado por um inútil engraçado, que doravante se pendura nele. O potencial cómico desta personagem foi bem explorado por Frederico Brückelmann. Para completar o elenco, falta referir Maria Inês, que interpretou os vários papeis secudários. Embora com menos tempo em palco, teve ocasião de mostrar que como actriz é tão convincente como os protagonistas masculinos. Tanto a sopeira da tasca nojenta como a mulher sedutora foram uma delícia. Achei notável nesta peça escrita, realizada e representada por alunos dum liceu, a maturidade e o bom olho na escolha do registo. Tinha entrado no teatro vagamente apreensivo dum espectáculo ou sobrecarregado de pretenso significado, ou, pelo contrário, duma sucessão desconexa de graças de originalidade limitada. Nem uma nem outra coisa se verificou. Por um lado, o motivo da odisseia num só dia arrumou satisfatoriamente a questão da consistência narrativa, e a tensão entre as duas personagens principais desiguais forneceu oportunidades bastantes para a exploração da cómica situacional e do talento dos actores. Para falar de referências, e falo delas sem ironias, se bem com o devido desconto, admito que me ocorreram, além do Ulysses de Joyce, os pares desiguais Bucha e Estica e até - passe o exagero - Vladimir e Estragon. Pois a cómica do espectáculo, naturalmente devendo ao Slapstick, com destaque nos brilhantes passagens de reajuste do cenário entre as cenas, procurava genuinamente explorar o absurdo, e manteve-se longe do registo foleiro da corrente comédia televisiva. A produção estava em todos os aspectos muito competente, os cenários, limitando-se a apontamentos minimais dos requisitos necessários, bem escolhidos e eficazmente explorados pelos actores, e a iluminação e o som absolutamente profissional, seguros e perfeitamente sincronizados. Os duzentos espectadores prestaram standing ovation no fim do espectáculo, e era evidente que passaram uma hora bem divertida ao ver uma peça inteligente, despretensiosa e com um excelente ritmo. Próximos espectáculos: Terça-feira, 17.4. às 11.30h de manhã e Quinta-feira, 19.4. às 15.00h No Auditório Camões Entrada: 2 Euro Bilhetes a venda na Escola Secundária de Camões - Contacto: 969111243 Como nasceu esta peça? Há uns meses Francisco Marcus, que escreveu o argumento, desafiou um grupo de colegas e amigos para realizá-la em conjunto. À partir daí, formaram um grupo, o “Ditas Cálias”, distribuiram segundo os interesses e aptidões de cada um os vários papeis entre eles: da organização, da realização à representação, e lançaram mãos à obra. Foram discretamente, sem grandes intromissões, apoiados pela sua escola, que se limitou a disponibilizar-lhes as suas instalações e de facilitar-lhes o seu uso. Isto leva-me a um momento de reconciliação com o ensino público em Portugal, tão vilipendiado, e com razão, a tantos respeitos. A visita de ontem ao Camões deu-me, em contraste a isto, alento. Não só as excelentes instalações, que bem sei, infelizmente estão longe de ser regra nas escolas portuguesas. Mas a plateia que vi, os jovens que se reuniam para ver o espectáculo dos seus colegas, vinham a um evento social, vinham para ver e para serem visto, constituiam isso mesmo: uma comunidade. E faziam boa figura. Longe das imagens de desgraça que as televisões nos mostram dos recreios, também longe das plateias dos concursos de talento da TV, que eu erradamente quase julgava já se terem substituído às tradicionais oportunidades, como esta aqui descrita, de jovens se experimetarem nas artes de espectáculo. O nível de tudo, do espectáculo e do público, era infinitamente superior ao que nos habituámos a ver na TV. Não quero menosprezar os candidatios destes concursos, não negar que neles se encontram jovens com aptidões prodigiosas, possívelmente algumas bem acima das que ontem vimos no Liceu Camões. Mas no essencial, não lhes chegarão aos calacanhares: na originalidade e na autenticidade. A não ser que vão à TV depois de já se terem metido em aventuras semelhantes à da aqui descrita. Pois na TV, são levadas a fazer proezas formatadas, são apertadamente monitorizados para reproduzir o padrão do sucesso já experimentado pelos responsáveis do programa. Não esqueçamos, lá não estão para se exprimirem, mas ao serviço das audiências do programa. Estes rapazes e raparigas do Camões puderam fazer o que queriam, aquilo em que acreditaram, livre de ouvir da boca de qualquer vedeta da televisão a sempre igual lenga lenga do “acreditar”, sem que interessa minimamente em que se acredita, ou melhor, em que aquilo em que “se acredita”, já há muito foi decidido pela produtora. 13.4.07
O melhor post sobre o assunto do canudo. Na pesquisa de verificação do conhecimento que tinha sobre Barbarossa, cheguei a saber da existência dos Darwin Awards. Esta instituição, cuja razão de ser me pareceu logo mais que pertinente, premeia humanos que perderam a sua vida e correspondente capacidade reprodutiva devido a sua estupidez, contribuindo assim para o melhoramento do pool genético humano. Barbarossa foi premiado por tentar nadar com a sua armadura. A Wikipédia refere outros premiados: Uma pessoa que morreu ao fazer malabarismo com granadas de mão armadas (Croáçia, 2001); alguém que saltou dum avião para filmar paraquedistas, esquecendo-se do paraquedas (EUA, 1987); alguém que jogou roulette russo com uma pistola semi-automática, que avança o tambor automáticamente até a próxima câmara carregada (EUA, 2000); alguém que verificou o interior dum depósito de gasolina para ver se continha algo inflamável, usando um isqueiro (Brasil, 2003). Obviamente, os Darwin Awards são atribuidos por quem acredita na Teoria da Evolução. E não se pode negar que os casos citados são mais um argumento a seu favor. O contrário acontece com os que acreditam no Intelligent Design. Estes terão que tirar, perante estes casos, uma conclusão incómoda: que o design afinal não era assim tão inteligente... Já antes de ler o post do Rui Bebiano no Passado/Presente (também no Terceria Noite) sabia do mito do vosso Dom Sebastião. Logo quando o ouvi pela primeira vez, soava-me familiar. Pois nós os alemães temos, salvo o nevoeiro, um mito muito semelhante. O nosso Dom Sebastião chama-se Friedrich Barbarossa e foi coroado em 1155 imperador do “sacro império romano de nação alemã”. Em 1190, na Terceira Cruzada, que empreendeu junto com Ricardo Coração de Leão e Filipe II da França, afogou-se ao tomar banho no rio Saleph na Anatólia. Uma variante reza que caiu do seu cavalo ao atravessar o rio, o que tinha consequências fatais devido à pesada armadura que envergava. Tal como no caso do Dom Sebastião, o que se mantém dele presente no conhecimento popular é a sua lenda, que reza assim: Que na verdade o imperador não morreu, mas dorme, escondido, junto com todos os seus cavaleiros, numa vasta gruta na montanha Kyffhäuser, perto do seu castelo imperial no centro da Alemanha. Dorme lá, ressonando, debruçado sobre uma pesada mesa de carvalho que, nos séculos entretanto decorridos, já é indestrinçavelmente penetrada pela sua farta barba ruiva. De quando em quando, ele acorda e manda um rapaz para ver se os corvos, que voam desde que há memória em volta do Kyffhäuser, deixaram de fazê-lo. Pois isso seria o sinal de que chegou o dia em que em todo o mundo não soava nenhuma arma, e então o imperador voltará para retomar o governo da cristandade. 12.4.07
Na ocasião do aparecimento do blogue De Rerum Natura li algures num blogue religioso um comentário depreciativo - julgava que fosse no Trento na Língua, mas não o encontro - sobre o "discurso científico" aplicado a questões de religão. Na altura, compreendi e simpatizei com a reserva, embora ainda não tinha encontrado matéria no blogue que a justificasse. Também eu embirro com o tom arrogante do cientista que acha que tem, se não as respostas mesmo, no método das ciências exactas o instrumento certo para obter as respostas às Últimas Questões. Devo dizer que esta expectativa, de encontrar o blogue embebido neste espírito, não se confirmou. Pelo contrário: Os últimos posts são - a meu ver, claro - exemplar como se pode abordar estas Últimas Questões, como cientista, de forma humilde e com sensibilidade religiosa. Coloco a tónica no "humilde", pois é exactamente aí onde a teologia tantas vezes falha, arrogando-se, como pretensa ciência, saber mais sobre estas coisas do que se pode cientificamente saber... Hoje, outra vez, uma delícia... (Elogiamos os nossos amigos porque são os nossos amigos? Ou elogiamos os nossos amigos porque nos agradam ou mais, no caso, enternecem? Ou é por isso que são os nossos amigos?) 11.4.07
Sexta-feira, 13.4.2007 21h00 (Estreia) Terça-feira, 17.4.2007 11h30 Quinta-feira, 19.4.2007 15h00 Há dias falei mal da música pop dos anos 80. Que a dos anos 70 foi muito melhor pode comprovar-se no blogue do Francisco José Viegas. Obrigado por lembrar os Slade, que também marcaram a minha adolescência. Sim, também há música decente dos anos 80, como The Pogues. Afrodite de Rodos (420 a.C.) 10.4.07
Dois posts da Palmira F. Silva sobre mulheres na Alemanha. Sobre o assunto do segundo, a Helena há tempos já escreveu isto. ...pouco informada, mas bastante firme, sobre o caso do canudo de Sócrates: Abstraindo completamente da informação, a meu ver ainda pouco consistente, sobre os pormenores do caso em concreto, parece-me já altamente plausível a existência de irregularidades na papelada e também no próprio processo da licenciatura de Sócrates. Apoio-me no pouco, mas suficiente, do que sei do funcionamento do ensino superior, privado e público, em Portugal. Em que medida no caso se complementam ou não burocracias desadequadas, desleixo e tráfico de favores, não sei. Calculo que o que se passou estava dentro do normal inaceitável. Mas não posso deixar de dar razão ao FNV do Mar Salgado - como se sabe, um empedernido apoiante do PS - que o caso é tristemente ilustrativo sobre como se faz oposição política e jornalística em Portugal. Aliviando-se da maçada de atacar as políticas, centra-se na pessoa. Como esta vive em Portugal e até hoje se saiu bem na vida, há razão em acreditar que basta cavar o suficiente para que se descobre merda. Todos sabemos, por experiência própria, que não há ninguém em Portugal que fez carreira para além do simples professor do secundário, que não contornou este ou aquele obstáculo de forma menos ortodoxa. E mesmo se não se encontre nada, continuamos a acreditar, pela mesma razão, a do nosso próprio exemplo, que houve aqui algo, e constatamos com reforçado respeito, misturado de inveja, que o sacana se safou. Mesmo muito triste seria se um governo que finalmente fez alguma coisa - se bem ou mal, ainda veremos, e temos (isto é: têm vocês) oportunidade de castigar ou recompensar nas próximas eleições - caisse sobre um tal assunto. Isso sim, seria a certidão de óbito da política em Portugual. 8.4.07
The lotus eaters - film still (Marcel Dzama) 7.4.07
Acontece que por regra discordo do Tiago Cavaco, excepto quando fala de música. Mas também aqui não há belo sem senão. Está no seu blogue em exibição um clip dum grupo obscuro, que felizmente se extinguiu antes de eu chegar a este vosso país. Não compreendo o que pode levar alguém a desenterrar aquela bosta, que teria ficado melhor onde estava, junto com aliás quase tudo que se fez de música nos anos 80. Não havia necessidade. Pai: Já compraste um relógio, uns óculos de sol, um holograma, duas pulseiras, um anel, uma carteira e um tambor muito bonito. E agora queres ainda gastar toda a tua mesada de Abril também. Porquê? Vicente (7): Depois de comprar coisas fica-se mais feliz! De volta, visito os meus links preferidos para constatar que estão lá com razão: Dias Felizes. Sempre tenho dificuldade quando me desafiam a fazer listas "top". Posso no entanto, em vez de dizer que é o melhor de todos, dizer que ai está um blogue perfeito. E é sempre bom ler o FNV. E o Luis. |
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