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  • 25.3.07
    Sr. R.

    Quando recentemente visitei a minha terra, vi o Sr. R., pela primeira vez desde há anos. Estava no cemitério, a tratar da campa da sua mulher. Vi-o a partir da rua, entre ciprestes, sozinho, como sempre sozinho: um homem mais baixo que alto, de cara redonda, e com o mesmo cabelo branco que lhe conhecia de antigamente, mais fino agora, mas branco como já na primeira vez que o vi. Na forma que se mexia, notei a velhice, andava de passos curtos, parecia hesitante, como se não tivesse a certeza toda que o chão que pisava o sustentava. Sempre teve uma forma peculiar de movimentar-se: cauteloso, como preocupado em não chocar com algo, em não fazer impressão desagradável. De facto, o seu movimento lembrou-me uma rapariga que conhecia nas aulas de dança de salão da Juventude Católica, que frequentei aos quinze anos. Era muito feia, pálida até ao ponto da morbidez, com um nariz muito grande, e vestia também de forma pouco favorável, muito conservadora e fora de moda, assim que mal reparei, na altura, no seu físico de resto muito bem-feito. Quando ela me calhou na dança, fez-me uma sensação estranha: não a sentia! Era como se tivesse uma parceira fantasma. Antecipava os meus movimentos, que eu sabia pesados e bastante desajeitados ao tentar conduzir, como me competia, e movimentava-se com uma fluidez e leveza tal que não houve o mínimo de resistência. Não era uma falta de resistência inerte, pelo contrário, como bem compreendi, era uma falta de resistência altamente activa e controlada.

    A nossa terra foi durante oitocentos anos uma aldeia, composta por uma rua torta com casas de tijolo de burro e uma igreja gótica, que, embora rústica e modesta, quando medida por qualquer bitola normal, era manifestamente desproporcional à comunidade que servia. Situa-se na planície entre os rios Maas e Reno que aqui, graças às morenas do tempo dos glaciares, não é inteiramente plana, mas suavemente moldada. Alternam nela baixas colinas, mal perceptíveis como tais, ora cobertas por campos, ora por florestas, com pastos, pântanos e lagos deixados pela extracção de turfa e que hoje servem à pesca. Uma terra marcada por um céu baixo mas largo, como há em determinados quadros da escola holandesa.
    Até aos anos setenta do século XX, essa paisagem ficou remetida a sua pacata auto-suficiência, trocando o dono de vez em quando entre duques regionais e o episcopado, atravessada nas guerras por diversas tropas, que pela sua sorte aqui nunca muito se demoraram. Foi uma terra em que havia poucos forasteiros, e as pessoas que aqui viviam conheciam-se, as suas vidas e os seus segredos.
    Isto mudou com a construção da auto-estrada, que aproximou esta paisagem agradável às grandes cidades no vale do Reno, e a transformou numa zona de residência idílica da classe média que nelas trabalhava.
    Assim nasceu o bairro das moradias novas, num plano de que se via ter saído do estirador de quem não desperdiçou pensamento sobre a genese histórica ou as características topográficas da povoação. Recortou-se entre campos onde se cultivava batata, centeio e milho, um rectângulo que doravante era a extensão da nossa aldeia organicamente crescida. Na verdade, não foi a primeira extensão. Já antes, nas duas décadas que seguiram à 2ª Guerra Mundial, havia-se acrescentado ruas ao núcleo original, mas de uma forma avulsa, mais natural, ao passo do crescente bem-estar da população local, que se reflectia em casas novas e maiores para os filhos da terra. Eu morava numa delas. Embora não tendo nascido aqui, também não era um forasteiro normal. Tínhamos chegado antes deles, quando o meu pai acompanhara o seu sócio, que se instalara na terra natal da sua mulher. Assim, não me via como um dos recém-chegados das cidades.

    Desses era a familia R.. Ocupou um “bungalo”, ou seja uma moradia sem telhado, novo mas na altura já fora da moda, pela sua ambição modernista e falta de cedências ao estilo local. Não era melhor por isso. Se por um lado lhe faltava o kitsch habitual das moradias de quem, saído da cidade, no campo pretendia encenar a vida rural, este prédio desinspirado de tijolo branco primava pela acentuada ausência de qualquer qualidade acolhedora.
    Os R. tinham quatro filhos, todos rapazes, e o segundo deles, o J., chegou a ser colega da minha turma. O mais velho tinha então 15, o J. a minha idade, 13, e ainda havia os gémeos, dois rapazes com 10 anos, que andavam no 1º ano do liceu.

    Desta altura, ainda não éramos amigos próximos, só me lembro de uma vez que fui a sua casa. Foi assim que conheci a mãe, e de facto a única vez que a vi de perto. Entravamos na cozinha, o J. e eu, e ela estava lá a preparar um ovo estrelado para os gémeos. Perguntou-nos se também queríamos um, mas o J. apressou-se de negar para nós os dois, que ela não se preocupasse, que faziam-no nós. Achei curioso que o J. se oferecia para fazer-nos o lanche. Eu estava habituado, sem pensar, a que esse serviço sempre fosse feito pela mãe.
    A Sra. R. deixou-me, como depois outras coisas em casa do meu amigo, uma impressão incómoda. Tinha sido, ainda há pouco tempo, uma mulher bonita. Alta, de cabelo liso negro, grandes olhos castanhos, lábios cheios. Mas agora a boca estava descaída para um lado, e o olho direito vagueava num vazio sem fixar qualquer coisa, e reparei que as collants que cobriam as pernas debaixo da saia estavam amarrotadas, mal apertadas, como se fossem dum tempo em que as pernas não tinham sido tão magras, e reparei nos sapatos de salto baixo que pareciam ter fins ortopédicos, como o de garantir um poiso seguro para quem necessita ajuda para manter o equilíbrio.
    Mais do que os sinais directos no seu físico, que foram consequência do AVC que a Sra. R. tinha sofrido recentemente, foram as collants amarrotadas que me deram uma sensação angustiante e deprimente de desleixo, de descalabro.

    Embora vizinhos, durante os próximos três anos não cheguei a pôr os pés nesta casa, e o meu contacto com J., o colega da turma, limitava-se a isso mesmo, éramos colegas, sem animosidades, sem especiais simpatias. Cada um vivia no seu grupo de amigos, que não se cruzavam. Isto só mudou quando passávamos a encontrar-nos também na Juventude Católica da vila vizinha, e então a partilhar o mesmo meio.
    Aproximávamo-nos porque interessávamo-nos pela mesma música, claro, e por questões filosóficas, mas antes de tudo descobrimos uma paixão comum para grandes viagens, que sonhávamos fazer no futuro.
    O J. era diferente de nós os outros, mais rigoroso, implacável. Ao contrário de mim e da maioria dos outros amigos, que talvez éramos meninos um pouco mimados e daí tinhamos uma visão optimista do mundo, uma em que as coisas boas eram o normal e as más estavam a espera de encontrar o seu remédio, o J. não acreditava nisto. O que de certa forma o afastava de nós, lhe deu um ar severo, até um pouco assustador, que nem sempre era agradável aturar, mas também um certo fascínio. Senti que era dum mundo fundamentalmente diferente do meu. Não concordava com ele, repudiava esta forma de estar na vida, mas continuávamos amigos, e achei sempre um pouco estranho que ele, conhecendo-me a mim, tinha tanto apreço para mim como mostrava.

    Quando voltávamos a dar-nos, já tinha falecido a mãe, na sequência doutro AVC. Tinha permanecido em coma durante quase dois anos. Os quatro rapazes viviam desde então com o pai, que tinha o seu consultório de dentista numa cidade para lá do Reno, ausente durante o dia, e com o apoio duma governante.

    Como calhava, reuníamos ora em casa dum, ora em casa doutro amigo. Com frequência no quarto de J., que era dono duma excelente colecção de discos e duma aparelhagem própria. Falávamos de Deus e do mundo, mas nunca falávamos do falecimento da mãe ou de quaisquer outros problemas familiares. Mesmo assim, não sei como, sendo ele um amigo tão reservado no que respeitava os assuntos pessoais e íntimos, já antes do episódio que pô-lo à vista de forma mais chocante, tínhamos consciência do ódio, do extremo desprezo que nutria pelo seu pai. E não só ele, como chegámos a saber, outra vez não sei como, o irmão mais velho, que raramente víamos, tinha-o também.
    Naquele dia estávamos, como inúmeras vezes antes e depois, no quarto de J., com uns amigos. Abriu-se a porta e entrou o pai e dirigiu, em tom educado, uma pergunta de foro prático ao filho. Este levantou-se, não disse uma palavra, e empurrou o pai, sem uso das mãos, só se aproveitando do seu peito largo e da sua altura maior, pela porta fora. Fechou o trinco e voltou, sem alteração na expressão da cara, sem explicação, à nossa conversa.
    Ninguém lhe perguntou nada. E o pai não voltou a entrar no quarto. Com a leviandade própria da nossa idade, conseguimos ultrapassar o momento embaraçoso e continuar a nossa amena cavaqueira naquele dia. Mas é verdade que o episódio me perseguiu, tão impensável era para mim a relação entre pai e filho, em todos os aspectos. O que pode gerar um tal ódio e desprezo? E ainda mais incompreensível era: o que pode ter levado o pai a aceitar um tratamento tão humilhante?
    Algumas vezes ainda, mas sem grande convicção e sem êxito, tentei obter um esclarecimento da parte do meu amigo. Depois deixei a questão ficar-se por aí, aceitei-a, como um dos factos humanos que são como são, sem explicação. Coerentemente, bani o Sr. R. do meu pensamento, quer dizer, cumprimentava-o, quando o via, o que acontecia inevitavelmente e com frequência na nossa terra pequena, e também em sua casa. Nunca formei opinião consciente sobre ele, não fiz minha a opinião desfavorável do meu amigo, nem a contestei. Para mim, o homem ficou enigmático, mas sem grande interesse. Embora inconscientemente, claro, tinha uma opinião dele: Um banana com um segredo provavelmente ignóbil, que o levou a aceitar a humilhação pública pelos seus filhos, na sua própria casa.

    Quase trinta anos depois, numa conversa ocasional com a minha mãe sobre uma amiga que sofreu um AVC e está em estado de quase coma há anos, ela mencionou uma frase que o Sr. R. terá proferido, não sei quando: Que, no caso da sua mulher, a ambulância tinha chegado 10 minutos cedo demais.
    A partir dessa frase, construí-me a explicação que me falta há 30 anos. Não sei se está certa, e não faço tenções de a verificar. Há muito perdi qualquer contacto com J., com o Sr. R. ou outro membro da família.
    Imagino. Imagino que, depois do primeiro AVC, a mulher terá solicitado uma promessa ao marido: Na próxima vez, não faças nada!
    E na próxima vez, o Sr. R. tentou fazer nada, mas foi contrariado pelos seus filhos.

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