<$BlogRSDUrl$>




  • 29.3.07
    Pausa



    (Loustal)
    28.3.07

    Nude
    (Edward Weston)
    26.3.07
    Nichts zu danken

    «Não posso deixar de expressar hoje a minha admiração pela versatilidade do povo alemão, que sabe tão bem adaptar-se com a mesma fervorosa convicção aos mais variados tipos de regime político: abraçou entusiasmado o nacional-socialismo durante duas décadas, para depois, durante quarenta anos, construir devotamente o modelo mais evoluído do comunismo, e actualmente expressa a inabalável fé na democracia parlamentar burguesa e na união dos mercados financeiros europeus.
    Danke

    Bem, Carlos, deixa-me ajudar-te ser um pouco mais preciso: Os que construiram devotamente o modelo mais evoluído do comunismo, foram sempre uma minoria, e porventura os sobreviventes duma luta dedicada e com grandes sacrifícios contra o nacional-socialismo. E quanto a inabalável fé dos alemães na democracia parlamentar burguesa e na união dos mercados financeiros europeus, deixa-me recolocá-la onde a extraiste, na devoção à ideia europeia. Essa não foi uma alternativa arbitrária ao nacional-socialismo, mas a sua consequência directa: Foi e é abraçada pelos alemães como uma, merecida ou não merecida, oportunidade de redenção.
    25.3.07
    Sr. R.

    Quando recentemente visitei a minha terra, vi o Sr. R., pela primeira vez desde há anos. Estava no cemitério, a tratar da campa da sua mulher. Vi-o a partir da rua, entre ciprestes, sozinho, como sempre sozinho: um homem mais baixo que alto, de cara redonda, e com o mesmo cabelo branco que lhe conhecia de antigamente, mais fino agora, mas branco como já na primeira vez que o vi. Na forma que se mexia, notei a velhice, andava de passos curtos, parecia hesitante, como se não tivesse a certeza toda que o chão que pisava o sustentava. Sempre teve uma forma peculiar de movimentar-se: cauteloso, como preocupado em não chocar com algo, em não fazer impressão desagradável. De facto, o seu movimento lembrou-me uma rapariga que conhecia nas aulas de dança de salão da Juventude Católica, que frequentei aos quinze anos. Era muito feia, pálida até ao ponto da morbidez, com um nariz muito grande, e vestia também de forma pouco favorável, muito conservadora e fora de moda, assim que mal reparei, na altura, no seu físico de resto muito bem-feito. Quando ela me calhou na dança, fez-me uma sensação estranha: não a sentia! Era como se tivesse uma parceira fantasma. Antecipava os meus movimentos, que eu sabia pesados e bastante desajeitados ao tentar conduzir, como me competia, e movimentava-se com uma fluidez e leveza tal que não houve o mínimo de resistência. Não era uma falta de resistência inerte, pelo contrário, como bem compreendi, era uma falta de resistência altamente activa e controlada.

    A nossa terra foi durante oitocentos anos uma aldeia, composta por uma rua torta com casas de tijolo de burro e uma igreja gótica, que, embora rústica e modesta, quando medida por qualquer bitola normal, era manifestamente desproporcional à comunidade que servia. Situa-se na planície entre os rios Maas e Reno que aqui, graças às morenas do tempo dos glaciares, não é inteiramente plana, mas suavemente moldada. Alternam nela baixas colinas, mal perceptíveis como tais, ora cobertas por campos, ora por florestas, com pastos, pântanos e lagos deixados pela extracção de turfa e que hoje servem à pesca. Uma terra marcada por um céu baixo mas largo, como há em determinados quadros da escola holandesa.
    Até aos anos setenta do século XX, essa paisagem ficou remetida a sua pacata auto-suficiência, trocando o dono de vez em quando entre duques regionais e o episcopado, atravessada nas guerras por diversas tropas, que pela sua sorte aqui nunca muito se demoraram. Foi uma terra em que havia poucos forasteiros, e as pessoas que aqui viviam conheciam-se, as suas vidas e os seus segredos.
    Isto mudou com a construção da auto-estrada, que aproximou esta paisagem agradável às grandes cidades no vale do Reno, e a transformou numa zona de residência idílica da classe média que nelas trabalhava.
    Assim nasceu o bairro das moradias novas, num plano de que se via ter saído do estirador de quem não desperdiçou pensamento sobre a genese histórica ou as características topográficas da povoação. Recortou-se entre campos onde se cultivava batata, centeio e milho, um rectângulo que doravante era a extensão da nossa aldeia organicamente crescida. Na verdade, não foi a primeira extensão. Já antes, nas duas décadas que seguiram à 2ª Guerra Mundial, havia-se acrescentado ruas ao núcleo original, mas de uma forma avulsa, mais natural, ao passo do crescente bem-estar da população local, que se reflectia em casas novas e maiores para os filhos da terra. Eu morava numa delas. Embora não tendo nascido aqui, também não era um forasteiro normal. Tínhamos chegado antes deles, quando o meu pai acompanhara o seu sócio, que se instalara na terra natal da sua mulher. Assim, não me via como um dos recém-chegados das cidades.

    Desses era a familia R.. Ocupou um “bungalo”, ou seja uma moradia sem telhado, novo mas na altura já fora da moda, pela sua ambição modernista e falta de cedências ao estilo local. Não era melhor por isso. Se por um lado lhe faltava o kitsch habitual das moradias de quem, saído da cidade, no campo pretendia encenar a vida rural, este prédio desinspirado de tijolo branco primava pela acentuada ausência de qualquer qualidade acolhedora.
    Os R. tinham quatro filhos, todos rapazes, e o segundo deles, o J., chegou a ser colega da minha turma. O mais velho tinha então 15, o J. a minha idade, 13, e ainda havia os gémeos, dois rapazes com 10 anos, que andavam no 1º ano do liceu.

    Desta altura, ainda não éramos amigos próximos, só me lembro de uma vez que fui a sua casa. Foi assim que conheci a mãe, e de facto a única vez que a vi de perto. Entravamos na cozinha, o J. e eu, e ela estava lá a preparar um ovo estrelado para os gémeos. Perguntou-nos se também queríamos um, mas o J. apressou-se de negar para nós os dois, que ela não se preocupasse, que faziam-no nós. Achei curioso que o J. se oferecia para fazer-nos o lanche. Eu estava habituado, sem pensar, a que esse serviço sempre fosse feito pela mãe.
    A Sra. R. deixou-me, como depois outras coisas em casa do meu amigo, uma impressão incómoda. Tinha sido, ainda há pouco tempo, uma mulher bonita. Alta, de cabelo liso negro, grandes olhos castanhos, lábios cheios. Mas agora a boca estava descaída para um lado, e o olho direito vagueava num vazio sem fixar qualquer coisa, e reparei que as collants que cobriam as pernas debaixo da saia estavam amarrotadas, mal apertadas, como se fossem dum tempo em que as pernas não tinham sido tão magras, e reparei nos sapatos de salto baixo que pareciam ter fins ortopédicos, como o de garantir um poiso seguro para quem necessita ajuda para manter o equilíbrio.
    Mais do que os sinais directos no seu físico, que foram consequência do AVC que a Sra. R. tinha sofrido recentemente, foram as collants amarrotadas que me deram uma sensação angustiante e deprimente de desleixo, de descalabro.

    Embora vizinhos, durante os próximos três anos não cheguei a pôr os pés nesta casa, e o meu contacto com J., o colega da turma, limitava-se a isso mesmo, éramos colegas, sem animosidades, sem especiais simpatias. Cada um vivia no seu grupo de amigos, que não se cruzavam. Isto só mudou quando passávamos a encontrar-nos também na Juventude Católica da vila vizinha, e então a partilhar o mesmo meio.
    Aproximávamo-nos porque interessávamo-nos pela mesma música, claro, e por questões filosóficas, mas antes de tudo descobrimos uma paixão comum para grandes viagens, que sonhávamos fazer no futuro.
    O J. era diferente de nós os outros, mais rigoroso, implacável. Ao contrário de mim e da maioria dos outros amigos, que talvez éramos meninos um pouco mimados e daí tinhamos uma visão optimista do mundo, uma em que as coisas boas eram o normal e as más estavam a espera de encontrar o seu remédio, o J. não acreditava nisto. O que de certa forma o afastava de nós, lhe deu um ar severo, até um pouco assustador, que nem sempre era agradável aturar, mas também um certo fascínio. Senti que era dum mundo fundamentalmente diferente do meu. Não concordava com ele, repudiava esta forma de estar na vida, mas continuávamos amigos, e achei sempre um pouco estranho que ele, conhecendo-me a mim, tinha tanto apreço para mim como mostrava.

    Quando voltávamos a dar-nos, já tinha falecido a mãe, na sequência doutro AVC. Tinha permanecido em coma durante quase dois anos. Os quatro rapazes viviam desde então com o pai, que tinha o seu consultório de dentista numa cidade para lá do Reno, ausente durante o dia, e com o apoio duma governante.

    Como calhava, reuníamos ora em casa dum, ora em casa doutro amigo. Com frequência no quarto de J., que era dono duma excelente colecção de discos e duma aparelhagem própria. Falávamos de Deus e do mundo, mas nunca falávamos do falecimento da mãe ou de quaisquer outros problemas familiares. Mesmo assim, não sei como, sendo ele um amigo tão reservado no que respeitava os assuntos pessoais e íntimos, já antes do episódio que pô-lo à vista de forma mais chocante, tínhamos consciência do ódio, do extremo desprezo que nutria pelo seu pai. E não só ele, como chegámos a saber, outra vez não sei como, o irmão mais velho, que raramente víamos, tinha-o também.
    Naquele dia estávamos, como inúmeras vezes antes e depois, no quarto de J., com uns amigos. Abriu-se a porta e entrou o pai e dirigiu, em tom educado, uma pergunta de foro prático ao filho. Este levantou-se, não disse uma palavra, e empurrou o pai, sem uso das mãos, só se aproveitando do seu peito largo e da sua altura maior, pela porta fora. Fechou o trinco e voltou, sem alteração na expressão da cara, sem explicação, à nossa conversa.
    Ninguém lhe perguntou nada. E o pai não voltou a entrar no quarto. Com a leviandade própria da nossa idade, conseguimos ultrapassar o momento embaraçoso e continuar a nossa amena cavaqueira naquele dia. Mas é verdade que o episódio me perseguiu, tão impensável era para mim a relação entre pai e filho, em todos os aspectos. O que pode gerar um tal ódio e desprezo? E ainda mais incompreensível era: o que pode ter levado o pai a aceitar um tratamento tão humilhante?
    Algumas vezes ainda, mas sem grande convicção e sem êxito, tentei obter um esclarecimento da parte do meu amigo. Depois deixei a questão ficar-se por aí, aceitei-a, como um dos factos humanos que são como são, sem explicação. Coerentemente, bani o Sr. R. do meu pensamento, quer dizer, cumprimentava-o, quando o via, o que acontecia inevitavelmente e com frequência na nossa terra pequena, e também em sua casa. Nunca formei opinião consciente sobre ele, não fiz minha a opinião desfavorável do meu amigo, nem a contestei. Para mim, o homem ficou enigmático, mas sem grande interesse. Embora inconscientemente, claro, tinha uma opinião dele: Um banana com um segredo provavelmente ignóbil, que o levou a aceitar a humilhação pública pelos seus filhos, na sua própria casa.

    Quase trinta anos depois, numa conversa ocasional com a minha mãe sobre uma amiga que sofreu um AVC e está em estado de quase coma há anos, ela mencionou uma frase que o Sr. R. terá proferido, não sei quando: Que, no caso da sua mulher, a ambulância tinha chegado 10 minutos cedo demais.
    A partir dessa frase, construí-me a explicação que me falta há 30 anos. Não sei se está certa, e não faço tenções de a verificar. Há muito perdi qualquer contacto com J., com o Sr. R. ou outro membro da família.
    Imagino. Imagino que, depois do primeiro AVC, a mulher terá solicitado uma promessa ao marido: Na próxima vez, não faças nada!
    E na próxima vez, o Sr. R. tentou fazer nada, mas foi contrariado pelos seus filhos.

    Etiquetas:

    Europa

    Na ocasião do 50º aniversário, não sei de melhor forma de comemorar do que voltar a recomentdar este artigo: Timothy Garton Ash: Europe's true stories
    24.3.07

    Turtlu
    (Rachell Sumpter)
    Blogues

    Imperdível: A série de posts do Rui Bebiano sobre os blogues!
    Hoje publicou o quarto, em doze. Actualizarei a lista dos posts na coluna aqui ao lado, em portugues.
    23.3.07
    Investigative Jornalism

    Li ontem, provavelmente no último Público que comprei, a investigação sobre a formação acadêmica do Eng. Sócrates. Hoje leio no DN que na mesma investigação já enveredou o neste domínio já famoso blogue Do Portugal Profundo. Não sei se estes dois pilares da nossa comunicação social se coordenaram ou não, mas que houve uma grande aproximação em termos de ética, estilo e serviço público, é indesmentível.
    A juiza relativista

    Em Frankfurt, Alemanha, 2007: Uma mulher de origem maroquina, vitima de violência do marido, solicitou o divórcio de urgência, com dispensa do cumprimento do ano de separação obrigatório na lei alemã, excepto em casos em que isso constitui uma violência inaceitável. A juíza recusou o pedido: “O exercício do direito de castigar não preenche o critério de violência definido pelo parágrafo 1565”.

    Embora lamentável e inaceitável, é de dar de barato que num sistema judicial dum país de 80 milhões de habitantes haverá sempre juízes idiotas, juízes que acabaram por passar-se e ainda não foram retirados do serviço, e por consequência as vezes decisões estapafúrdias. Para corrigir estas - também para corrigir estas, existe a instituição do recurso à instância superior.
    Uma pergunta que se coloca todavia é se esta decisão representa mais do que a si mesma, um disparate avulso. É evidente que o escândalo parte do pressuposto que sim. De que ela é indício dum novo paradigma, o do relativismo cultural, ou até da já consumada subversão islamista dos tribunais da República Federal de Alemanha.

    Eu - ainda - não sei. Não sei se a juíza é muçulmana e/ou simpatiza com o código da Sharia, e por isso aprova a violência do homem contra a mulher dentro do matrimónio. Ou se, não sendo muçulmana, tem uma visão tão absoluta do casamento, que nem espancamentos repetidos e ameaças de morte pelo marido lhe configuram razão suficiente para facilitar o divórcio. (Essa visão não é só própria dalguns muçulmanos!) Ou se acha, o que a parte citada da sua justificação permite supor como o mais provável, que com o casamento islâmico a mulher abdicou do seu direito a integridade física, e da protecção que a constituição do estado alemão garante.
    Em todos o casos está obviamente em flagrante contradição com a lei vigente e com os valores da sociedade que tem obrigação de servir, e consequentemente desqualificada como juíza.

    Ainda assim gostava de ver respondida a pergunta, se uma idêntica decisão dum juiz, se o casal visado não fosse muçulmano, mas alemão e cristão, teria levantado o mesmo vendaval de indignação. Haveria indignação, tão justa como esta agora, mas calculo que muito menos. O caso tem tanta explosividade porque é um excelente exemplo para quem se preocupa com o impacto que a imigração dos países islâmicos tem na nossa cultura ocidental.

    O caso mostra uma resposta errada a um problema sério:
    O problema é que, com o crescente peso demográfico dos imigrantes islâmicos, o consenso moral e cultural está posto em causa. Há quem alega que os islâmicos já começaram a “infiltrar” as instituições do estado. Essa infiltração, note-se, nem precisa de ser resultado dum plano subversivo, engendrado nas madrassas alemãs, e não é fácil de impedir nem o seu impedimento fácil de legitimar. Pois é o natural resultado da sua integração na sociedade, e essa passa, se merecer esse nome, também pela ocupação de lugares em todos os sectores, privados e públicos, culturais, económicos, políticos e também da justiça. E é também natural que as pessoas trarão com elas referências culturais e morais que porventura são divergentes do nosso cânone laico, liberal e democrático. O que é um problema. Esperamos que a integração passa pela assimilação dos valores, cuja consensualidade é o fundamento da nossa sociedade. Mas há indícios que não é caso.

    Em resposta a este problema, a juíza parece ter agido de acordo com uma linha de pensamento não tão marginal na Alemanha, que se pode chamar relativismo cultural. (Que uma juíza professe uma tal crênca, é obviamente de ironia suprema!) Esta ideia tem a sua origem na luta da esquerda contra o imperialismo, aqui o imperialismo cultural. Na perseguição demasiado diligente desta nobre tarefa, alguns, não poucos infelizmente, chegaram à conclusão peregrina da equivalência de todos os sistemas de valores. Uma postura atractiva para quem não quer esforçar-se em demasia pelo rigor quer intelectual quer moral. Sempre se evita ser acusado de xenófobo.
    Mas se na política externa talvez seja necessária alguma moderação no empenho na exportação dos nossos valores para sociedades cujas referências estão longe das nossas, permitir dentro da nossa própria sociedade que cada tribo vive segundo os seus códigos autónomos, desvinculada dos valores basilares comuns, acaba por levar, em última instância, ao sacrifício da própria civilização. Uma sociedade que não se esforça continuamente na procura de consenso em torno de valores basilares comuns, - que podem evoluir, sim, mas sempre terão que ser valores comuns... uma sociedade que se demite disto está condenada.

    (alterado)
    22.3.07
    Vergonha

    Se fosse um bom patriota, devia mas é ficar calado, em vez de ajudar a divulgar o que se decide em tribunais alemães.
    21.3.07

    Laundry Maid
    (Henry Robert Morland)

    Ainda há dias apontei o dedo moralista a quem postou uma imagem erótica duma criada. Hoje junto uma criada a minha série de playmates. Não posso? - Posso.
    20.3.07
    A alucinação do António

    Ora, aqui podem ler um perfeito disparate! Só porque o Independent reviu a sua posição sobre a liberalização do Canabis, o António Costa Amaral quer fazer-nos crer quem é fundamentalmente responsável pela criminalização das drogas é a esquerda, e mais precisamente os antigos “hippies”, que viraram “fascistas”.

    Eu não sei se e, se for o caso, com quem o AA costuma(va) fumar, mas posso-lhe assegurar que quem fuma(va) e fez/faz bandeira da liberalização das drogas, não tinha/tem qualquer ideia socializante em mente, mas a liberdade, e a inspiração da cultura hippie não era marxista mas, se era de esquerda, dum "comunismo" romântico e libertário, cuja matriz era claramente anárquica. (E que por isso sempre foi desprezada e combatida pelos comunistas a sério!)

    Entretanto, é verdade, os hippies envelheceram e aburguesaram. Excepto uns poucos excêntricos, os que sempre há, e que se concentram no meio das artes, e aqueles que ficaram pelo caminho porque as drogas afinal foram mais fortes que eles, os restantes instalaram-se na sociedade, são hoje "esquerda caviar" (poucos) ou pacatos eleitores do PS ou do PSD, e não confiam nos seus filhos o suficiente para querer expô-los aos riscos que eles, quando jovem, acharam o seu mais natural direito correr. Com esquerda/direita isso tem pouco ou nada a ver.

    Execepto uma coisa, claro: O facto político indesmentível que as políticas da repressão contra o consumo de drogas, como aliás as políticas de repressão em geral, nas democracias ocidentais sempre foram e ainda são promovidas pela direita. E isto tem uma razão: Porque a direita, ao contrário do que o António nos quer fazer crer e, até acredito, ao contrário do que gostava, nunca teve a liberdade em grande conta.
    19.3.07
    Limpar o pó...

    A Helena fez um post sobre funerais. Não pude senão lembrar-me do funeral que estes grandiosos falhados fizeram ao seu amigo.



    (The Big Lebowski)

    As vezes nasce um blogue que realmente fez falta.
    Porte

    Deu-me gozo o espectáculo do Conselho nacional do CDS/PP? – Sim.
    Sim, deu-me imenso gozo ver aquilo e contrastá-lo com o discurso de dignidade, valores, elevação, ao que nos habituaram os dirigentes deste partido e ninguém mais do que o próprio Paulo Portas.

    Mas esse é um prazer pecaminoso. Porque se esta demonstração do vale-tudo é representativa pelo que é política em Portugal, e receio que é, ou quase, então temos todos motivo para andarmos deprimidos.
    Eu pelo menos ando, e por uma razão muito digna para um conservador que não sou: Falta aqui algo que, atrás e por baixo de toda a dureza exigível, manha necessária e ambição legítima, é imprescindível: Nem digo princípios, antes algo que chamamos Haltung: Porte. A não confundir com a palavra “postura”, que sempre soa um pouco a “postiço”, a pretensão, o que Haltung não é. Tem mais a ver com dignidade, e antes de tudo, com substância.

    Etiquetas:

    18.3.07
    Irene Sendler



    Até hoje não sabia da existência de Irene Sendler. Agora sei, devido a um artigo do Spiegel.

    Irene Sendler era enfermeira quando os Nazis ocuparam Varsóvia e iniciaram a perseguição sistemática dos judeus. Começou a sua actividade de resistência ao falsificar documentos para possibilitar a judeus necessitados de continuar de beneficiar da segurança social. Em 1940, após o internamento dos judeus no gueto de Varsóvia, isso deixou de ser possível. Sendler e as suas colegas conseguiram então arranjar documentos que as autorizavam visitar o gueto regularmente, como técnicas de saúde, devido ao medo que os nazis tinham de epidemias, para quais as condições no gueto eram obviamente propícias. Quando em 1942 começaram as deportações para os campos de extermínio, Sendler criou um plano para salvar as crianças do gueto. Para que elas, depois da guerra, constituissem o núcleo duma nova vida judia, e assim contrariar o objectivo dos Nazis da aniquilação de tudo que era judeu. Contactou com a Zegota, uma organização de resistência que unia judeus e não judeus, e o director desta organização convidou Irene Sendler de criar e dirigir então o “departamento Crianças”.
    No gueto, iam de família em família e disseram-lhes que tinham a possibilidade de levar as crianças, clandestinamente, para fora. Muitos pais e mães não conseguiram separar-se dos seus filhos, e frequentemente, quando as enfermeiras voltaram no dia seguinte, para persistir na tentativa de convecê-los, já não encontraram ninguém.

    No total foram assim salvas cerca de 2500 crianças. Saíram escondidas debaixo da maca da ambulância, através do edifício do tribunal, que tinha uma entrada para a porta do gueto e outra para o lado “ariano”, ou pela canalização. Algumas foram anestesiadas com soporíferos e levado em sacos ou malas.
    As crianças foram primeiros levadas para “centros de segurança” clandestinos, onde lhes ensinaram de comportar-se como crianças polacas não judeus, depois foram distribuídas, com nova identidade, para famílias, orfanatos e conventos.
    Os nomes das crianças Irene Sendler guardou, em código, em papel de cigarro, que enterrou em garrafas no quintal. Assim queria assegurar a possibilidade da posterior restituição às suas famílias originais, que, como se sabe, todavia quase nunca sobreviveram.

    No 20 de Outubro 1943 a SS prendeu Irene Sendler na sequênçia duma denúncia. Desmontaram a sua casa até às fundações, mas não encontraram as listas. E Irene Sendler não cedeu os nomes nem na tortura, quando lhe esmagaram os pés e lhe partiram ambas as pernas. Foi condenada a morte, mas pouco antes do fuzilamento, a Zedoka conseguiu subornar um guarda da SS que a espancou e atirou para fora do camião que a ia levar para a execução.
    Conseguiu manter-se na clandestinidade até ao fim da guerra.

    Em 1965 foi homenageada por Israel, em Yad Vashem, como uma “justa entre os povos”. Mas na Polónia, nos cinquenta anos que se seguiram à ocupação nazi, ninguém lhe ligava muito. Era uma resistente, mas não era comunista. Só nos anos noventa começou a ser reconhecida no seu país e objecto de merecidas homenagens.
    Mas ela não se sente heroína. Diz que ainda hoje sofre com a sua consciência: porque não fez mais e melhor do que fez.

    Não foi eu que foi salvo por ela, mas mesmo assim, mais do que admiração lhe tenho ainda gratidão: São pessoas como Irene Sendler que são, como alguém disse, a beleza do nosso mundo.

    (Mais sobre Irene Sendler aqui, em inglês.)

    Etiquetas: , ,

    16.3.07

    The Training of English Children
    (Arthur Rackham)

    A erotização das crianças não é de hoje, e até floresceu na cultura mais púdica de que há memória, na vitoriana. Terei uma twisted mind, ao sentir um apelo erótico nesta imagem? Acho que não, mas pelo seguro apresento ainda uma desculpa: A rapariga maior parece-se de forma perturbante com a grande paixão da minha adolescência.

    Também compreendo como os críticos da publicidade da Armani Júnior chegaram a lembrar-se da pedofilia. Não precisei de servir-me de deduções abstractas para perceber que a foto da rapariga de tronco nu com o soutien de rendas transporta uma menságem sexual. Mas não faço o curto circuito entre uma roupa provocadora e o horror do abuso sexual da criança. Entre estas duas paragens há um mundo - e um inferno - inteiro. Mas quem vive, como os apóstolos da virtude, no temor do plano inclinado, quem se mantém tão longe do Eros em todas as suas manifestações, que lhe falta o discernimento para sobrever esta distância, para este o deslize está perigosamente perto.

    E no entanto, a fotografia merece crítica severa: Que o salto duma imagem erotizada de duas crianças para o cenário do horror do seu abuso sexual é dado, a isso ajuda elas serem crianças asiáticas, e que nós assim somos convidados a associá-las ao turismo sexual e à prostituição infantil. Isto sim, é um cinismo repugnante.

    Agora que se vêem crianças em soutien de rendas, não me choca. Deixamos uma vez de lado que estamos perante um anúncio. Não me custa nada imaginar as crianças vestirem-se assim, se a roupa estiver disponível, por vontade própria e em toda a inocência. A brincar, ao imitar as mais velhas. Para se acharem sexy. Podem ainda estar a descobrir o que isso é: sexy. E isto pode ser totalmente inocente, e continuará inocente, mesmo quando descobrem pelo caminho o erotismo infantil, que é natural e existe.

    Devia impedir essas brincadeiras? – Só me ocorre uma razão: para protegê-las dos olhares impuros dos adultos, e de, Deus proíbe, outras coisas piores que se seguem. Como pai, este argumento não deixa de me fazer impressão, embora racionalmente sei, um pouco demais. Apesar das histórias que se lêem e que se vêem na televisão, não me convenço de que vivemos num mundo cercado por tarados, e que em cada adulto haja um pedófilo a espreita para violar o meu filho.
    Carência

    Obrigado, Timshel! Era esse mesmo a imagem de que me lembrei (já não tão correctamente), quando vi o filme com a boneca!
    15.3.07

    Essa Pipilotti Rist, que não conhecia, é mesmo muito muito boa!
    Miséria

    Ler as duas páginas do DN sobre a criança de Penafiel foi uma experiência emocionante. Comecei com náusea, passei pela revolta para chegar à depressão.
    Quanto à exploração mediática da história, neste caso pela SIC, só há este comentário: Não consigo comer tanto como me apetece vomitar.
    Mas depois de ter-me aliviado um pouco, volto a olhar para a história em si: E o nojo dá lugar a revolta: Isto, porra, é miséria, em plena União Europeia!
    No plano material até terei, perante esta constatação, de dar ouvidos ao argumento dos “jornalistas” da SIC...
    - desculpem a interrupção, mas saiu-me outra golfada de vómito -
    ... de dar ouvidos ao argumento de que com a exibição da mãe na televisão sempre lhe proporcionaram a oportunidade de angariar 2680 € e, ao que consta, mobiliário da Moviflor. E quanto a mãe, aceito o argumento: Então ela não fez bem, não agiu no melhor interesse da família, e da criança reavida?

    Mas vê-se bem, e isso é o motivo para a minha tristeza, que a miséria não é só material. Não consigo alegrar-me pela criança, ao ver-la restituída a essa família. Não estou a propor que ela fique com a mãe raptora que, na melhor das hipóteses, é uma pessoa que não regula bem, e também não me deixa descansado a perspectiva que seja entregue a uma instituição de acolhimento, ainda menos depois do que tenho aprendido sobre estas nos últimos anos.

    Resta constatar que essa criança nasceu com azar. É assim, no Portugal de 2007, há quem realmente nasce na miséria, nasce para a miséria. Sem ou com mobiliário Moviflor.
    14.3.07

    Banho de enxofre
    (Ellen Auerbach)
    13.3.07
    Skating away

    Meanwhile back in the year one
    When you belonged to no one
    You didn´t stand a chance son
    If your pants were undone

    Cause you were bred for humanity
    And sold to society
    One day you´ll wake in the present day
    A million generations removed from expectations of
    Being who you really want to be

    Skating away
    Skating away
    Skating away
    On the thin ice of a new day

    So as you push off from the shore
    Won´t you turn your head once more
    And make your peace with evryone
    For those who choose to stay
    Will live just one more day
    To do the things they should have done

    And as you cross the wilderness
    Spinning in your emptyness you feel you have to pray
    Looking for a sign that the Universal Mind
    Has written you into the passion play

    Skating away
    Skating away
    Skating away
    On the thin ice of a new day

    And as you cross the circle line
    Well the ice wall creaks behind
    You´re a rabbit on the run
    And silver splinters fly
    In the corner of your eye
    Shining in the setting sun

    Well do you ever get the feeling
    That the story´s too damn real and in the present tense
    Or that everybody´s on the stage
    And it seems like you´re the only person sitting in the audience

    Skating away
    Skating away
    Skating away
    On the thin ice of a new day

    Skating away
    Skating away
    Skating away


    (in Jethro Tull: Warchild. Aqui ao lado no player.)
    Pela terceira vez, o Prémio Sécil decidiu galardoar-se com Álvaro Siza

    Apetece-me parafrasear o que escrevi há três anos:

    Enquanto rendemo-nos aos grandes mestres, depois de eles terem provado a sua qualidade lá fora, e lhes entregamos, no fim da sua carreira, os prémios e as oportunidades, que devíamos ter lhes entregue quando ainda andavam por cá ignorados, para que um pouco do seu brilho também nos ilumine cá na nossa terra, estamos a repetir o mesmo crime com aqueles talentos - por enquanto - menos famosos entre nós, aos quais negamos a oportunidade de se afirmar e de se qualificar em grandes trabalhos. Os Sizas de amanhã estão entre nós.

    Não. Não me refiro às "mulheres". Refiro-me ao homem no segundo video.
    12.3.07

    Dhau
    Por outro lado...

    ...sou crescidinho e sei que não é. No fundo, tudo devia ser de graça. Mas não é.
    Esclarecimento

    Quero afastar um possível malentendimento do que escrevi no post anterior. Acho que sexo devia ser de graça.
    10.3.07

    Feierstunde
    (Max Slevogt)

    O título em portugues seria "hora de festa". Notável neste quadro pintado em 1900 é como ele retrata o sexo. Sem o habitual disfarce bíblico ou mitológico, sem pretexto moralizante, como nesta hipócrita fusão de apelo sexual e sobreaviso do seu colega Franz von Stuck, sem o contexto do pecado assumido da vida nocturna, como usual nos contemporâneos franceses. Não: Aqui o sexo aparece quotidiano e respeitável, mas não por isso menos delicioso, como merecida recompensa depois dum duro dia de trabalho.

    (para zoom clicar imagem)
    9.3.07
    E Deus criou a mulher...

    Ó pá Miguel, também produzes, ou só fazes a distribuição? Se também produzes, vá lá falar com a Helena, por favor...
    Oprah

    Finalmente, a resposta a uma questão que já me roia há muito!

    ...

    Pensando melhor, João, lamento dizê-lo, o sucesso do programa da Oprah continua-me inexplicável, e o facto de que há quem se submeta a este esterco, quem o emita e quem o veja, continua a deprimir-me.
    A Terceira Noite

    Parabéns atrasados ao Rui Bebiano, e obrigado pelo post, que me levou a mastigar as minhas palvras jocosas acerca do dia 8 de Março.
    8.3.07
    Como tratamos a nossa memória

    Uma vez voltei ontem à sala, levado pela curiosidade se e como referiram o Carlos Cruz na gala da RTP. Soube que referiram-no, que até lhe gravaram uma mensagem a partir da sua casa.

    A Maria João Lima indigna-se que o fizeram.

    Eu acho muitissimo bem. Que venha a ser condenado ou não, o Carlos Cruz é parte da história da RTP, que é como quem diz da memória colectiva dos Portugueses. Branquear esta dele é como retocar fotografias históricas fazendo desaparecer personagens que cairam em desgraca. Um procedimento habitual em regimes de que guardamos muito infeliz memória. E não interessa aqui se cairam em desgraça merecidamente ou não.

    Mais do que com o respeito pelo Carlos Cruz, que também conta, mesmo se venha a ser condenado, porque uma coisa são os seus possíveis crimes, outra os seus méritos na comunicação social portuguesa, isto tem a ver com o respeito pela verdade. Que devemos a nós.

    Etiquetas:

    To whom it may concern:

    Querem que digo ou faço algo em especial, por ser 8 de Março?
    A cada um a sua, e só a sua história?

    A França e a Alemanha fizeram um manual escolar de história comum. Não conheço o seu conteúdo, não sei se os críticos têm razão que dizem que os textos são frouxos e ambíguos após tanta negociação diplomática, e que se excluiu dele cuidadosamente qualquer matéria mais polémica. Provavelmente têm.
    Mesmo assim, acho-o um feito fantástico. Quem se lembra da “Erbfeindschaft”, da “inimizade hereditária” entre França e Alemanha, quem se lembra das centenas de milhares de jovens, que pereceram nas valas da 1ª e da 2ª Guerra Mundial, como se a uma lei natural e inalterável obedecessem, só pode constatar, orgulhoso e comovido, o progresso que a reconciliação e a paz entre estes dois povos fizeram, de que este manual é uma indesmentível prova.
    Como li, é só um primeiro passo. As épocas mais controversas faltam ainda, espero muito que sejam também tratadas. Porque só vejo vantagens em ensinar na Alemanha - também! - o ponto de vista francês do tempo entre 1870 e 1945, como na França o mesmo período - outra vez: também! - do ponto de vista alemão.

    Noto como em Portugal este projecto é visto, à direita e à esquerda, com pouca simpatia. Só consigo entender esta falta de simpatia, se me lembro da dificuldade de fazer, a partir de Portugal, dele uma apreciação desinteressada. Em vez de reconhecer o óbvio e dizer «que bom: dois países com uma relação de inimizade centenária e sangrenta entendem-se hoje tão bem que até são capazes de ensinar aos seus filhos a sua história dum ponto de vista comum», são assaltados pela angústia ao pensar no suposto ou genuíno interesse nacional. »Mais um reforço do terrível Eixo Franco-Alemão! Mais um passo em direcção à anulação da nossa autonomia e, se esse exemplo se estende, como proposto - cruzes canhoto! - por toda a União Europeia, da anulação da identidade portuguesa!»

    É legitima a preocupação dum país pequeno em não perder a sua cultura própria na inevitável globalização dos conhecimentos das gerações futuras - esta não contornará a matéria da história – mas é um sinal de falta de visão e coragem não ver o mérito e o exemplo neste empreendimento.

    P.S.:
    O uso do manual franco-alemão não é obrigatório. Está explicito no DN (versão papel) que ele não o é nem na França nem na Alemanha, e não acredito que alguém pensa que o deveria ser no futuro. Pelo menos na Alemanha, isto contrariaria toda a filosifia e política realizada em matéria de ensino. Desde 1948, não é sequer o (nacional) Ministério Federal de Educação que decide forma e conteúdo do ensino, mas os dezasseis ministérios dos dezasseis estados federais, cada um com autonomia da sua política educativa e legitimidade eleitoral própria. E em cada destes estados cabe, como em Portugal, às escolas a escolha dos manuais escolares. Não há "livros únicos" na Alemanha.


    Adenda:
    Aconselho a quem fala, se ainda não o leu, num processo de intenções, de limpeza como objectivo ou pelo menos resultado do livro de história comum, de antes fazê-lo. Ou, a falta deste, uns livros escolares alemães sobre a sua própria história. Surpreender-se-ia com o desassombro com que eles olham para um passado pouco edificante.
    Já que estamos a fazer processos de intenções: No medo que aqui fala, oiço atrás do alegado pluralismo outra coisa: chauvinismo.
    7.3.07
    Auto-defesa

    Estou aqui num exilio forçado, no quarto do meu filho mais velho, ainda ouvindo, pela porta entreaberta, o som das celebrações dos 50 anos da RTP.
    Mesmo com esforço, não consigo ultrapassar a repulsa que este tipo de espectáculo me causa. É verdade, alguns dos recortes dos programas históricos têm interesse, até graça, algumas (muitas) das declarações de afecto de velhos colaboradores serão genuinamente sentidas, pelo menos no momento. Mas isso não chega para compensar a hipocrisia dos auto-elogios estudados, a insuportável auto-bajulação colectiva.
    Mesmo artistas que respeito dão se a isso. Se calhar por obrigação: não se podem permitir ficar de fora. Ou talvez (já) não sentem a falsidade, por estarem tão habituados. Mas eu sinto-a, sinto a necessidade urgente de subtrair-me desta influência nociva: espiritualmente nociva. Nestas ocasiões lembro-me da minha espiritualidade. Pela negativa: quando ela é agredida.

    (Rudolf Schlichter)

    Desejo, Catarina, desejo. Não preconceito.
    Há dias em que sonho ter um harem, ter raparigas disponíveis para fazerem exactamente o que quero. Noutros sonho outra coisa. Como hoje, em que tenho todo o gosto de te pedir desculpa...
    6.3.07
    O homem precisa de chegar a casa

    Não sou grande apreciador da religião islâmica, mas admito que, ao visionar um programa do canal Odisseia, ou People and Arts, ou semelhante, apercebi-me pela primeira vez do grande poder de atracção desta religião, e precisamente neste aspecto: na poligamia.

    Era uma reportagem sobre um navegador e comerciante do Iémen, um homem com quem simpatizei a partir do primeiro momento, pela sua postura séria, humilde, um homem que dá realmente um bom sentido ao termo "temente de Deus". Este homem era proprietário duma Dhau, dum destes barcos lindíssimos, que já nos tempos de Mil e uma Noite transportavam Sindbad e os seus companheiros, e que maravilhosamente ainda hoje navegam no Índico. Como se sabe, a vida no mar é dura, e ter de concorrer com os grandes navios de contentores não facilita. Mas ele e os seus marinheiros aguentam-se, com muito trabalho e dedicação. Passam a sua vida, excepto os poucos dias em terra, na sua irmandade exclusivamente masculina, unida, naturalmente, também por laços familiares, no alto mar, num vai-vêm interminável entre Aden e Carachi.

    Este homem dizia-se feliz. Gosta do seu trabalho, mas mais ainda gosta das suas famílias, que com ele sustenta. Uma em cada porto.

    (alterado)
    5.3.07

    Renate
    (Ellen Auerbach)
    A pata na poça

    Ninguém disse nada, então digo eu: O sketch dos Gatos sobre Marques Mendes no domingo passado era merdoso.
    Coisas simples

    O Carlos lançou o desafio de rebater a argumentação de Pedro Arroja. Pensei que já o teria feito, modestamente, através do pequeno relato da minha conversa com o comunista. Mas se não me fiz entender, então será porque não entendemos a mesma coisa sob o termo liberdade.

    A liberdade de que o Pedro Arroja fala é uma liberdade cassada. Aí a autoridade, que presta contas a ninguém ou, no caso do Papa, a uma entidade obscura, irresponsável e de existência duvidosa, revoga a liberdade para voltar a concedê-la depois, na medida e na forma como entende, a quem entende: por exemplo na medida e forma diferente a homens e mulheres. Como em qualquer outra ditadura, bem como no sistema feudal, donde este conceito de liberdade provêm, as pessoas não são proprietários da sua liberdade, mas só seus usufrutuários.
    Ao contrário disto, a liberdade de que eu falo é uma propriedade inalienável: Um direito do homem.
    Noto a preocupação de Pedro Arroja em realçar a necessidade dos limites da liberdade. Como tantos defensores da autoridade, e mais ainda, defensores da sua autoridade, espera que a aceitação desta necessidade, a que o senso comum obriga, suprime a pergunta pertinente pela legitimidade de quem pretende impor estes limites.
    Numa sociedade livre os limites da liberdade não são impostos por cima, mas encontrados numa racional e democrática negociação entre os seus co-titulares.

    E se a natureza fosse justa, caberiam a cada homem pelo menos duas mulheres, vá lá: três.
    3.3.07
    Grandeza

    «Um homem, embaixador duma Grande Potência, tem um colapso nas férias de verão, mas não é, como se verifica, nenhum enfarte, só uma descoberta que o atingiu, e aqui não ajudam nenhumas férias, nenhuma nova condecoração, para se recompor. Ele descobriu que afinal não é a Excelência, pela qual o mundo debaixo de lustres pretende tomá-lo. Por força do cargo que ocupa são obrigados de levá-lo a sério, pelo menos enquanto o ocupa, enquanto ele próprio é obrigado, em nome da sua Grande Potência e do seu título, de levar-se a sério. Obrigado porquê? Uma carta ao seu governo, dactilografado por ele mesmo, para que nenhum secretário se aperceba que serviu desde há tanto do homem errado, está pronta – um pedido de demissão... Mas ele não se demite, escolha o maior: o papel. A sua descoberta sobre si continua o seu segredo. Ele cumpre o seu cargo. Até aceita que o promovem, e cumpre o seu cargo sem pestanejar. O que doravante pensa de si próprio não diz respeito ao mundo. Ele continua a representar, entretanto enviado a Washington, a Pequim, a Moscovo, o Embaixador, sabendo que representa, e não priva as pessoas a sua volta que acreditam que ele é o homem certo no lugar certo, da sua fé que não partilha, mas que é útil. Basta que ele não acredita. Ele está digno e sereno, e os que duvidam dele não o incomodam; não precisa de temê-los nem odiá-los, só de combatê-los. E acontece o que parece um milagre: enquanto só representa, já não só presta o ordinário, mas o extraordinário. O seu nome aparece nas manchetes da imprensa mundial; também isso não o perturba. Ele domina o seu papel, que é o papel dum impostor, pela força do segredo, que nunca levanta, nem entre quatro olhos. Ele sabe: qualquer autoconhecimento que não sabe ficar calado só diminui e diminui. Ele sabe: quem não é capaz de ficar calado quer ser reconhecido na grandeza do seu autoconhecimento, que não é nenhum se não sabe estar calado, e uma pessoa fica susceptível, sente-se traída pelas pessoas, enquanto quer ser reconhecido pelos homens, fica ridícula na proporção inversa do autoconhecimento. Isto é importante: também não entre quatro olhos. Dito é dito para sempre. Assim ele faz de conta como se acreditasse na sua excelência, e denega-se qualquer aproximação a pessoas, nomeadamente a amigos que o avaliam como ele se avalia. Nenhuma confissão o cativa. Graças à sua personalidade, que representa, uma cidade é salva da destruição por bombardeiros, e o seu nome vai entrar na história, ele sabe-o, sem sorrir, o seu nome será escrito em mármore, quando morre, como nome duma rua ou duma praça, e um dia ele morre. Não se encontra nenhum diário, nenhuma carta, nenhum papel que nos trai o que ele soube todos estes anos, isto é, que foi um impostor, um charlatão. Ele leva o seu segredo, que conhecia, para o túmulo, ao qual não faltam bandeiras honrosas, coroas grandes e discursos longos, que cobrem o seu autoconhecimento para sempre. Não espreita para além da sua campa; perante a sua máscara da morte, que como algumas máscaras da morte tem algo de sorridente, admiramo-nos: ela tem um traço de grandeza, inegável. E até nós, que nunca o tivemos em grande conta, mudamos discretamente o nosso julgamento, porque ele o nunca nos pediu, em face a sua máscara da morte.»

    (em Max Frisch: Mein Name sei Gantenbein)
    2.3.07

    Origami
    (Mark Kirschenbaum)
    A vida dos outros

    Não estou especialmente habilitado a pronunciar-me sobre o filme, por ter vivido onze anos, e na época em questão, em Berlim (ocidental). O filme não é, como outros já notaram, sobre a RDA. Ele é uma fábula que explora uma temática universal mas circunscrita, e por isso não precisa de retratar exaustivamente a sociedade que lhe serve como pano de fundo. E não o faz. Sem desrespeito pela manifesta competência com que foram feitos os figurinos, os cenários, a luz, para recriar o cinzentismo e antes de mais o vazio da RDA destes tempos, o filme não chega a criar mais do que um esboço abstracto do mundo em que se desenrola a sua história. Com poucas alterações ao script, o filme teria dado, na sua falta de dimensão épica, uma perfeita peça de teatro, o que não o impediria aparecer em cinema, como mostra o exemplo de “Dogville” de Lars von Trier.

    Mas uma vez tendo desistido de procurar verosimilhanças, para além em apontamento, com a vida real no país do Socialismo Real, o filme é magnífico. Pela fábula, e pelos actores: Ulrich Mühe, ao personificar com discreta intensidade o agente da STASI que se deixa corromper porque, voyeur por dever profissional, a vida dos outros lhe passa a ser o último amparo no absoluto vazio da sua vida pessoal, quando o cinismo dos seus colegas e superiores acaba por arruinar de vez o seu amparo ideológico. E Ulrich Tukur, insuperável como personificação do mal, no sentido de Arendt: do carreirista jovial, amigo de amigos, enquanto não inconveniente, e inimigo de quem quer que seja, se for necessário. Uma pessoa normal para qual encontro, sem qualquer esforço, numerosos exemplos nos meus conhecimentos pessoais na Alemanha de hoje, ou cá em Portugal.
    A ler:

    As transcrições do Timshel de Milan Kundera sobre "ginofobia".
    Parabéns ao Kontratempos!
    1.3.07

    Splitting 10-11
    (Gordon Matta Clark)
    A verdadeira liberdade, segundo o Ministério da Verdade

    Uma vez, no banco de trás do automóvel duma pessoa generosa que nos dava boleia entre Berlim Ocidental e a antiga RFA, naquelas auto-estradas vigiadas que serviam para os ocidentais atravessarem o país do Socialismo Realmente Existente, tive uma conversa com um simpático comunista, estudante em Berlim Ocidental como eu, que aproveitou as horas que necessariamente partilhavamos no carro para o proselitismo da sua causa. À minha natural chamada de atenção ao Muro que tinhamos acabado de atravessar, com polícias de kalashnikov em riste e com cães pastor a passear entre os carros, ao arame farpado, aos holofotes e às torres de vigia, respondeu com o maior desassombro: Claro que havia liberdade na RDA, só eu ainda não sabia distinguir entre liberdade e arbitrariedade!

    Vem isso a propósito deste delicioso post ao que cheguei através do André Carapinha. O André tem razão: Tem graça ler num blogue que se chama Blasfémias e cuja bandeira é a liberdade, pérolas como esta:

    «Ele [o Papa] presta contas a Deus. E Deus não aprovaria que ele utilizasse o seu poder para oprimir os homens, em lugar de o libertar.
    .
    A enorme liberdade de que goza o clero da Igreja Católica - e que permitiu à Igreja sobreviver a todas as dissidências - é uma consequência directa da autoridade absoluta do Papa. E esta autoridade torna-se o instrumento indispensável à liberdade - não uma liberdade qualquer, mas uma liberdade ordenada que permite tudo, excepto a destruição (da Casa de Deus).
    .
    Resulta também do exposto que esta liberdade ordenada - a única que é valiosa, porque é uma liberdade não-destrutiva - não pode nunca existir sem um profundo sentimento religioso porque é este sentimento que permite retirar o Papa do controlo dos homens e pô-lo sob o controlo de Deus. Por isso, eu estou hoje muito convencido de que a verdadeira liberdade - a liberdade ordenada - nunca poderá prevalecer numa população constituída predominantemente por ateus e agnósticos.
    .
    Sem o sentimento religioso, o Papa ficaria sujeito ao controlo dos homens, e não de Deus - por exemplo, do colégio de cardeais que o elegeu. E as ambições humanas rapidamente levariam cada um dos seus membros a ambicionar o lugar do Papa, desencadeando a intriga e a luta pelo poder que mais cedo ou mais tarde teriam convertido a Igreja no exemplo acabado da opressão - e que, há muito, teriam ditado a sua extinção.
    .
    Por isso, liberdade - no sentido de liberdade ordenada ou não-destrutiva -, não existe sem autoridade. E a autoridade não existe sem religiosidade.»


    Aguardo a próxima contratação do Blasfémias, que só pode ser o Prof. João César das Neves.

    This page is powered by Blogger. Isn't yours?

    Creative Commons License