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  • 3.3.07
    Grandeza

    «Um homem, embaixador duma Grande Potência, tem um colapso nas férias de verão, mas não é, como se verifica, nenhum enfarte, só uma descoberta que o atingiu, e aqui não ajudam nenhumas férias, nenhuma nova condecoração, para se recompor. Ele descobriu que afinal não é a Excelência, pela qual o mundo debaixo de lustres pretende tomá-lo. Por força do cargo que ocupa são obrigados de levá-lo a sério, pelo menos enquanto o ocupa, enquanto ele próprio é obrigado, em nome da sua Grande Potência e do seu título, de levar-se a sério. Obrigado porquê? Uma carta ao seu governo, dactilografado por ele mesmo, para que nenhum secretário se aperceba que serviu desde há tanto do homem errado, está pronta – um pedido de demissão... Mas ele não se demite, escolha o maior: o papel. A sua descoberta sobre si continua o seu segredo. Ele cumpre o seu cargo. Até aceita que o promovem, e cumpre o seu cargo sem pestanejar. O que doravante pensa de si próprio não diz respeito ao mundo. Ele continua a representar, entretanto enviado a Washington, a Pequim, a Moscovo, o Embaixador, sabendo que representa, e não priva as pessoas a sua volta que acreditam que ele é o homem certo no lugar certo, da sua fé que não partilha, mas que é útil. Basta que ele não acredita. Ele está digno e sereno, e os que duvidam dele não o incomodam; não precisa de temê-los nem odiá-los, só de combatê-los. E acontece o que parece um milagre: enquanto só representa, já não só presta o ordinário, mas o extraordinário. O seu nome aparece nas manchetes da imprensa mundial; também isso não o perturba. Ele domina o seu papel, que é o papel dum impostor, pela força do segredo, que nunca levanta, nem entre quatro olhos. Ele sabe: qualquer autoconhecimento que não sabe ficar calado só diminui e diminui. Ele sabe: quem não é capaz de ficar calado quer ser reconhecido na grandeza do seu autoconhecimento, que não é nenhum se não sabe estar calado, e uma pessoa fica susceptível, sente-se traída pelas pessoas, enquanto quer ser reconhecido pelos homens, fica ridícula na proporção inversa do autoconhecimento. Isto é importante: também não entre quatro olhos. Dito é dito para sempre. Assim ele faz de conta como se acreditasse na sua excelência, e denega-se qualquer aproximação a pessoas, nomeadamente a amigos que o avaliam como ele se avalia. Nenhuma confissão o cativa. Graças à sua personalidade, que representa, uma cidade é salva da destruição por bombardeiros, e o seu nome vai entrar na história, ele sabe-o, sem sorrir, o seu nome será escrito em mármore, quando morre, como nome duma rua ou duma praça, e um dia ele morre. Não se encontra nenhum diário, nenhuma carta, nenhum papel que nos trai o que ele soube todos estes anos, isto é, que foi um impostor, um charlatão. Ele leva o seu segredo, que conhecia, para o túmulo, ao qual não faltam bandeiras honrosas, coroas grandes e discursos longos, que cobrem o seu autoconhecimento para sempre. Não espreita para além da sua campa; perante a sua máscara da morte, que como algumas máscaras da morte tem algo de sorridente, admiramo-nos: ela tem um traço de grandeza, inegável. E até nós, que nunca o tivemos em grande conta, mudamos discretamente o nosso julgamento, porque ele o nunca nos pediu, em face a sua máscara da morte.»

    (em Max Frisch: Mein Name sei Gantenbein)

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