<$BlogRSDUrl$>




  • 30.4.04
    .


    Rebecca Horn: Löffel

    OK. Também vou propor uma: "Paciência!"
    Aquela de encolher os ombros, que só cheguei a conhecer cá em Portugal; não a outra, que aprecio muito, nomeadamente quando está casada com persistência, um plano e coragem...

    (poligamia, pois...)


    O que interessa a um religiosamente apatriado, embora de proveniência evangélica, um blogue colectivo católico?
    São os seus autores, que já conheço através dos seus blogues (semi-)individuais, e que colocam perguntas que também eu me coloco.
    São as perguntas, que me aproximam a eles, que me fazem sentir uma afinidade estranhamente mais forte com eles, do que com muitos bloguistas evangêlicos que, em termos religioso-culturais, e por razões biográficas, me são muito mais familiares.

    Serei, com gosto, curiosidade e expectativa um visitante da Terra da Alegria, consciente de não lha pertenço. Mas já estou habituado à condição de estrangeiro, e não me sinto mal nela.
    TE DESHOJÉ, COMO UNA ROSA
    para verte tu alma,
    y no la vi.

    Mas todo en torno
    - horzontes de tierras y de mares -,
    todo, hasta el infinito,
    se colmó de una esencia
    inmensa y viva.

    (Juan Ramón Jiménez)
    29.4.04
    Uma pessoa que conhece o seu lugar

    No nosso prédio temos uma porteira. Uma mulher bem-educada, muito discreta, e sem verstígios de proletária, ou rural, que as porteiras frequentemente aparentam. É da minha idade ou um pouco mais velha (nos seus anos 40) e tem sempre um ar um pouco triste, mas de forma tão discreta, que ninguem no prédio, num momento de jovialidade, pudesse lembrar-se de perguntá-la pela razão. Ela é solteira e vive no minúsculo "fogo da porteira", e para além de alguma actividade na paroquia do nosso bairro, que julgo ter verificado ao longo dos anos, não lhe conheço nenhum interesse, relações ou actividades para além dos seus serviços prestados ao condomínio. Recentemente soube que lhe morreu uma irmã, um facto que motivou a sua ausência por uns dias. Antes não me tinha ocorrido que pudesse ter família.

    Ela é mesmo muito discreta, e também em tudo o resto todos os condóminos, muito deles já de alguma idade, que não costumam estar satisfeitos facilmente com qualquer coisa, estão muito satisfeitos com ela.

    Em tempos, o condomínio ponderou a venda do fogo da porteira e contratar os serviços que o condomínio necessita dela à ela ou outrem. Mas a proposta foi chumbada, porque não se adequa a um prédio onde residem médicos, engenheiros e arquitectos. E assim continuo tentar de habituar-me ao facto de que ela me liberta, sempre que passo pela caixa de escadas, com triste humildade o caminho e murmura, também na quarta o quinta vez, "Boa tarde, Sr. Arquitecto".

    Lembrei-me dela por causa da proposta do Nuno Guerreiro de abandonar os títulos Sr(a). Doutor(a) etc. no âmbito do projecto de limpeza da língua portuguesa lançado pela Sra. Lic. Charlotte...

    P.S.: Nuno: Para além de Portugal e Itália existe um país europeu que é capaz de superar estes dois na mania dos títulos: a Austria!
    .


    Playmate da semana: Persephoné (Bernini)
    27.4.04
    Kitsch infantil?

    Crianças adoram kitsch. Deixam escolhê-las os brinquedos, e vejam...
    Mas não me lembro ter visto um desenho infantil, que fosse kitsch. Porquê?
    A partir de que idade uma criança é capaz de produzir kitsch?
    Here comes the flood

    When the night shows
    the signals grow on radios
    All the strange things
    they come and go, as early warnings
    Stranded starfish have no place to hide
    still waiting for the swollen Easter tide
    There's no point in direction we cannot
    even choose a side.

    I took the old track
    the hollow shoulder, across the waters
    On the tall cliffs
    they were getting older, sons and daughters
    The jaded underworld was riding high
    Waves of steel hurled metal at the sky
    and as the nail sunk in the cloud, the rain
    was warm and soaked the crowd.

    Lord, here comes the flood
    We'll say goodbye to flesh and blood
    If again the seas are silent
    in any still alive
    It'll be those who gave their island to survive
    Drink up, dreamers, you're running dry.

    When the flood calls
    You have no home, you have no walls
    In the thunder crash
    You're a thousand minds, within a flash
    Don't be afraid to cry at what you see
    The actors gone, there's only you and me
    And if we break before the dawn, they'll
    use up what we used to be.

    Lord, here comes the flood
    We'll say goodbye to flesh and blood
    If again the seas are silent
    in any still alive
    It'll be those who gave their island to survive
    Drink up, dreamers, you're running dry.

    (Peter Gabriel)


    26.4.04
    .


    Willi Baumeister: Mo mit Kreis
    Rectificação

    O "slogan" que citei do Barnabé no post anterior, deveria ter sido "O povo é quem mais ordena!", e é um verso do "Grandola Vila Morena".
    Confesso que não me tinha apercebido logo disso, e agora pergunto-me, se ao criticá-lo, estou a ofender os sentimentos dalguns leitores portugueses. Se assim for, lamento.

    Para além da rectificação do texto citado, não tenho nada a corrigir.
    25.4.04
    Mas claro, Povo, diz lá o que queres! Faço já!

    "O povo é quem mais manda!" - Slogans são, pela sua natureza, um atentado à inteligência das pessoas.
    Slogans, reaquecidos em comemorações, preenchem todos os requisitos do piroso. E este, aqui, que encontrei no Barnabé, sem dúvida é kitsch supremo.
    And the future was wide open...

    Em tempos disse a um amigo português que tem mais uns dez anos do que eu, que o invejava por ter tido a idade certa e estado no lugar certo para participar na revolução. Por uma vez ter estado presente na História, como actor. Por ter sentido o futuro colectivo também nas suas mãos, ter acreditado que tudo era possivel, para todos, só uma questão de querer e fazer...
    24.4.04
    Ich komme, ich weiss nicht, von wo?
    Ich bin, ich weiß nicht, was?
    Ich fahre, ich weiß nicht, wohin?
    Mich wundert, daß ich so fröhlich bin.


    (Anónimo, descoberto por Kleist)
    _______________

    Venho, não sei donde?

    Sou, não sei o quê?
    Vou, não sei para onde?
    Admira-me que tão alegre estou.
    Visita a uma cidade morta

    Às vezes a primeira vez não se vai lá. Quando há uns dias vi uma pequena fotografia de Cheronbyl no OzOnO, não prestei atenção. - Chernobyl, já conheço - pensei eu. Agora vi aquele post referido no Janela Indiscreta, com um muito merecido elogio em respeito ao OzOnO.
    Fui ver a reportágem fotográfica da Elena. Arrepiante, fascinante! E imaginando que quase perdi isto!
    23.4.04
    .


    Sappho (Fresco, Pompeii, 1º século d.C.)


    eu disse: vai e vive feliz para sempre e lembra-me
    no tempo que o amor foi nossa presa.
    se não, te lembro agora: com violeta e rosas teci a tua trança:
    um o que só do seio alastra incêndios;
    teu colo eu quis guirlanda de flor corando flor;
    e ungüentos raros - olor vindo de longe que só rainha aroma
    brilhei-te; minha mão te adormeceu na mais macia cama


    (fragmento de Sappho traduzido por Alvaro A. Antunes)
    Urbanismo de Referendo

    O Rui Tavares defende um referendo - como proposto por Santana Lopes - sobre as Torres de Alcântara. Reconhece que não se pode decidir democráticamente o que é arte e o que não, mas reitera a situação especial da arquitectura, porque ela, embora arte, tem um impacto na a cidade e em todos que nela habitam, ao qual não se pode fugir. ("Podemos sempre escolher não ouvir um compositor que nos desagrada ou fechar um livro a meio.")

    De acordo com a situação especial da arquitectura.
    Concordo com a participação dos cidadãos nas decisões sobre o desenvolvimento urbanístico das suas cidades (e não só...), para alem do voto nas eleições, mas parece-me completamente desadequado a ideia de referendar projectos que estão em contradição com a legislação e a estratégia urbanística vigente, pela seguinte razão:

    Arquitectura, e, na questão da cidade muito mais importante, urbanismo, é uma tarefa altamente complexa, e as tomadas de decisão no seu âmbito exigem a intervenção estruturada de um grande número de especialistas com formação para avaliar as condicionantes e propor soluções: Geografos, sociólogos, especialistas de ambiente, paisagistas, engenheiros de trâfego, de estruturas, das várias infraestruturas e urbanistas e arquitectos. A estes últimos dois cabe sintetizar os contributos dos anteriores num projecto, ou antes, num conjunto de regras que condicionam os futuros projectos numa determinada zona da cidade.

    São eles que, óbviamente orientados pelo cliente - os políticos eleitos -, elaboram um conceito estratégico para o desenvolvimento urbano, e as referidas regras: O Plano Director e Planos de Pormenor, entre outros.

    Pode-se, em concreto, criticar muito a sua qualidade e/ou as suas opções estratégicas, que de facto frequentemente deixam mesmo muito a desejar em Portugal.
    Pode-se defender, o que eu faço, um alargamento da intervenção dos cidadãos na sua elaboração e nas suas alterações (previstos legalmente, de 10 em 10 anos), mas não se deve sacrificar essas regras à decisões avulsas, descontextualizadas, sejam elas tomadas em referendo ou não: Quem o faz inviabiliza ainda mais qualquer planeamento coerente e sustentado.
    (E a ausência de verdadeiro planeamento - é engraçado chegar a dizê-lo numa resposta a um "Barnabeu" e não aos liberais do outro lado - é o que mais caracteriza o atraso de Portugal em relação às economoias europeias mais desenvolvidas!)

    Claro que me aborresse, como arquitecto, que haja uns, que têm um estatuto para ignorar regras urbanísticas estabelecidas, e eu não. Mas, aqui concordo com o Rui Tavares, não é essa a questão que mais interessa. Também não é um purismo ético, que defende o cumprimento de regras por qualquer preço. Admito que haja situações, em que faz sentido abrir excepções em nome dum bem maior. O que, por acaso, não vejo, nem nas Torres de Alcântara, que gosto bastante, nem na "Piazza de San Marco" dos Santos, que me convence menos.

    Há uma cultura em Portugal de decisões casuísticos, que são um lado da moeda cujo outro é um aparelho burocrático pesadissimo e lento, que mais do que assegurar um desenvolvimento sustentado e eficáz, parece existir mesmo para criar obstáculos e desencorajar todos menos uma elite, que têm influência suficiente para ultrapassá-los.

    Legitimar essas decisões casuísticos por referendos pode, na melhor das hipoteses (nem acredito nisso) incomodar às tais elites, mas é um passo errado no único caminho que pode melhorar as coisas: Introduzir mais qualidade, competência e - aí sim! - participação democrática na elaboração dos instrumentos urbanísticos: Os planos. E garantir que sejam respeitados.

    Já era um começo garantir que sejam respeitados os que há.

    Etiquetas: ,

    22.4.04
    "O Declinio do Ocidente"

    Estou muito perto de concordar com o que o Miniscente aqui escreve. Se não concordo mesmo, então "weil nicht sein kann was nicht sein darf!" ("because it cannot be what must not be"). Porque se acredito que é marca da lucidez da nossa civilização nos nossos tempos a descrença em todas as utópias (e não só), por ter comprovado que a tentativa de concretizá-las nos leva irremediavelmente ao inferno em terra, suspeito também que essa lucidéz nos retira a verve necessária para aguentar essa mesma civilização. E que assim, mais cedo ou mais tarde, como outras civilizações antes, seremos derrubados por outras culturas, com a esperança intacta e com o caminho para o inferno ainda pela frente.
    Só que desta vez o inferno será ainda mais completo, com a herança de todas as conquistas tecnológicas entretanto alcançadas...
    _________________

    Depois de pensamentos tão sombrios, tive felizmente, como o Miniscente, oportunidade de me divertir.
    Die Seeschlacht

    Ein amerikanischer Flugzeugträger
    und eine gotische Kathedrale
    versenken sich
    mitten im stillen Ozean
    gegenseitig.
    Bis zum Schluss
    spielte der junge Vikar auf der Orgel. -
    Nun hängen Flugzeuge und Engel in der Luft
    und können nicht landen.


    (Günter Grass)
    ________________

    A Batalha Naval

    Um porta-aviões americano
    e uma catedral gótica
    afundam-se
    no meio do oceano pacífico
    mutuamente.
    Até ao fim
    o jóvem vigário tocou o orgão. -
    Agora aviões e anjos estão pendurados no ar
    e não podem aterrar.
    21.4.04
    Outra decepção

    Este post só foi escrito para empurrar o Brian Molko para baixo. O rapaz é cute, mas tantas horas de destaque não merece.

    Descobri os Placebo na MTV, na altura quando ainda valia a pena vê-la (a MTV): não pela música, pelos videoclips!
    O que me atraiu no Brian Molko não eram só os looks: Era essa insinuação perfeita do excesso, do pecado desenfreado, do sex and drugs and rock'n roll, como só a senti com uma idade mais receptível para isso, nos anos setenta, com David Bowie.

    Mas infelizmente, e não devia ficar surpreendido, também o Brian Molko aburguesou. Tem 30 anos e filhos para criar. Como disse, há uns tempos, numa entrevista. E que não se podia viver toda a vida on the edge.

    Alguns a viviam...
    .


    Playmate da semana: Brian Molko


    Taste in men

    Come back to me awhile
    Change your style again
    Come back to me awhile
    Change your taste in men
    It's been this way since christmas day
    Dazzled, doused in gin
    Change your taste in men

    Come back to me awhile
    Change your style again
    Come back to me awhile
    Change your taste in men

    I'm killing time on valentine's
    Waiting for the day to end
    Change your taste in men

    Come back to me awhile
    Change your style again
    Come back to me awhile
    Change your taste in men

    It's been this way since christmas day
    Dazzled, doused in gin
    Change your taste in men

    Change your taste in men
    Change your taste in men
    Change your taste in men
    Change your taste in men
    Change your taste in men
    Change your taste in men
    Change your taste in men
    Change your taste in men

    (Placebo)
    _______________

    Já era sem tempo de eu postar um homem como Playmate da Semana.
    O Bruno Martins já se antecipou a mim a postar homens que acha giros. Mas os dele não são muito do meu género.
    Agora este...
    20.4.04
    Bush visto por Vasco Pulido Valente

    O link para o DN está "out of memory". Por isso linko para a Glória Fácil, onde tomei conhecimento do texto.
    Kitsch

    Espero que o Timshel não se esquece de continuar na sua análise do conceito do kitsch, uma das investigações mais interessantes que li ultimamente num blogue.
    Falta o prometido capítulo sobre o "kitsch católico" (Kitsch religioso já me chegava...)

    Se o Timshel tem razão - como eu penso - a dizer que "aquilo que caracteriza especificamente o kitsch é o tipo de mentira que ele traduz: trata-se de uma mentira que consiste em pegar em certos elementos da realidade, depurar essa realidade de todos os elementos que possam ameaçar a sua apreensão simplista e construir uma imagem que vise a comoção", então isso sustenta a minha ideia do estreito parentesco entre a ética e a estética, mas levanta uma pergunta pertinente, especialmente se falamos do kitsch religioso:
    Como qualificar a devoção religiosa de muitos milhões de pessoas, que se apoia num universo imagético kitsch?
    .


    Não fui eu.
    Nem os meus pais, que eram crianças na altura. Nem os meus avôs, de ambos os lados, cometeram crime maior (que já é grande, mas comum) do que olhar para o lado e de não erguer a voz. Mas quando vejo as imágens na Rua da Judiaria (que conheço bem), sinto uma inenarrável vergonha.

    E essa vergonha é merecida, enquanto continuo alemão, me sinto alemão. Desde muito novo, tento, por causa dessa vergonha, suprimir qualquer sentimento patriótico em mim, qualquer sentimento de orgulho nacional: Para não ter que sentir essa vergonha. - Por achar que se não fosse alemão, ou se meu ser alemão fosse um acaso que me calhou sem qualquer mérito ou demerito (racionalmente sei que assim é), não podia orgulhar-me de Kant ou de Beethoven mas também não teria que sentir essa vergonha.
    Por isso tento de não orgulhar-me de Kant ou de Beethoven. E de não estar contente quando a equipa nacional alemã ganha no futebol, por exemplo.

    Houve um tempo em que achei possivel recusar essa herança: tudo, bens e dívidas, como é possivel na vida civil. Mas não é. É evidente que não é.

    Sou alemão, e embora que não acredite nas leis de sangue, não posso devolver nem os benefícios nem as obrigações que vêm com isso, mesmo se quisesse. E assim vou ter que viver com a vergonha. E tentar aprender de fazer com ela algo que sirva para alguma coisa. E pensando nisto, percebi:

    Mesmo se deixasse de ser alemão, não me livrava dessa vergonha. Essa vergonha que é minha enquanto alemão, é também a vergonha de todos os Homens, de todos mesmo.
    Não somos só eu e os meus compatriotas que têm de aprender com ela.

    Etiquetas: , ,

    18.4.04
    Eu? No 25 Abril 1974?

    Pergunta-me o Jumento onde andava no 25 de Abril 1974. Por acaso não pergunta exactamente isso, mas acho que a resposta que pretendia era a essa pergunta.

    Não vivia em Portugal e isso tem de servir de desculpa porque não me lembro do que fiz neste dia.
    Tinha catorze anos e vivia em Brüggen, uma vila alemã mesmo muito pacata (ca.de 6.000 habitantes) perto da fronteira holandesa. Sei que na altura andava com a Elke, que era a filha do chefe de polícia da capital do distrito, que o Willy Brandt se demitiu duas semanas mais tarde (isso fui verificar agora no Google) e que mais tarde no ano caiu o Nixon (sabia isso ainda sem ajuda do Google). Também ganhámos o campeonato do Mundo neste ano...

    Mas lembro me bem dum Sábado no fim deste verão, onde o meu primo Michael, dez anos mais velho que eu e estudante em Berlim, apareceu numa festa de família - um baptizado - com uma pilha de discos: "Poder Popular".
    O meu primo tinha-se deslocado este verão, como muitos dos seus colegas, para Portugual com o fim de ajudar que a revolução tomasse o caminho certo. Agora estava de volta e com a venda destas gravações de canções revolucionários, feitos numa cooperativa alentejana, tentava angariar fundos para a boa causa. Depois ia voltar à Berlim e prosseguir com os seus estudos. Era um rapaz ajuizado.

    Lembro me bem porque isso animou a festa, que antes disso era, como todas as festas deste género, dum tédio insuportável. Adorei o debate que se desenrolou, e que foi principalmente protagonizado, para além do meu primo, pelo meu pai e pelo meu tio Emil (Ex Waffen-SS), e adorei como implacávelmente ignoravam todas as tentativas desesperadas dos meus outros tios (todos beatos) para amenizar o clima e desviar a conversa. Também devo ter contribuido com a minha opinião - era bom em opinar nestes tempos, muito melhor do que hoje.
    O meu pai acabou de comprar dois discos, para compensar pelo tio Emil, que era o único que não comprou nenhum. Até os meus tios beatos compraram discos, provavelmente na esperança de assim acabar com a discussão...

    Nesta altura não me coloquei a pergunta que me intriga hoje: O que é que os Portugueses achavam de todos estes auto-proclamados instrutores da revolução, que, depois do fracasso do Maio '68 em casa, e cientes de que na RFA ninguém lhes ligava nenhuma, se julgavam com vocacão para ensinar aos pobres Portugueses o verdadeiro caminho para a sociedade sem classes?
    ______________

    Quando hoje passo pelo Alentejo, reparo, sempre com bastante incómodo, em alguns deles que ficaram, ou talvez uns anos mais tarde voltaram de vez, com uma pequena herança no bolso e o sonho de uma vida simples mas confortável na mente, e se estabeleceram como agricultores ecológicos, ou, depois disto se ter revelado demasiado árduo, como agentes imobiliários que vendem a costa vicentina aos meus compatriotas que ainda não realizaram a sua fuga da inhumana sociedade alemã...

    Etiquetas: , ,

    Ainda há muitos para matar...

    Ainda não ouvi saltar as rolhas do champagne nos blogues aqui a volta, mas não deve tardar muito.
    E certamente haverá novamente quem gostava de ter sido quem disparou o missil, senão o missil mesmo... Porque é que isso me deprime? - Não há dúvida que este homem era asceroso, do pior mesmo... Mas há muitos monstros pelo mundo fora, por exemplo alguns também nas death rows de prisões americanos e outras. Deprime-me que os há. Monstros. Deprime-me também que há outros que anseiam para carregar o botão que lhes liga a cadeira eléctrica, ou os inunda de veneno.

    E neste caso concreto, o que me deprime antes de tudo é que não consigo ver o que de bom há de vir deste - não faço questão no termo - acto de guerra. Não imagino que alguém, certamente não Sharon, acha que a morte deles desmotivará os Palestinianos radicais de forma que decidem cessar os atentados assassinos. Pelo que leio, pelo que vejo na televisão, não faltam pessoas que, indiferente ao elevado risco de vida, estão dispostos para continuar onde Al-Rantissi foi interrompido.

    A lógica que levou à decisão de matar Al-Rantissi exige que se elimina também estes e os que sucedem a eles e os que sucedem a estes, até já não haver mais ninguém quem tem ódio e coragem suficiente para lhes suceder...
    Quantos serão? - Dez? Cem? Mil? Dez-mil? - Alguém acredita mesmo que assim chegará o momento em que se impõe uma elite palestiniana moderada, e diz com autoridade aos seus compatriotas: "Párem! Não vêem que não ganhamos. Vamos parar com os atentados e aceitar as condições que o governo de Israel e o dos EUA têm para nós!"

    Quem não acredita nisto - e só um demente em psicologia pode acreditar nisto - ou não tem plano nenhum (o que espero ser o caso, porque a estupidez me deprime menos do que a maldade humana) ou tem planos piores...
    17.4.04
    .


    Este é um dos quadros do ciclo O declínio do Oriente de Cy Twombly. Os outros e um texto interessante (em alemão) sobre o tópico, a batalha naval de Lepanto, encontram-se aqui.
    O americano Twombly radicou-se há 50 anos na Itália (casou com uma contessa, creio eu...) e explora desde então com a sua pintura, que, se fosse texto, o que às vezes também é, se assemelha - mas só assemelha - à escrita automática, o património mitológico do ocidente. O que torna a sua arte - emergindo do expressionismo abstracto - radicalmente subjectiva tão fascinante é que frequentemente ela não é completamente abstracta e o seu objecto então manifestamente colectivo. Como neste caso.
    _____________

    A batalha naval de Lepanto (1571):
    "[...] conta como o acontecimento mais sangrento de toda a história maritima mundial. Ao meio-dia enfrentam-se no golfo de Coríntia 260 navios turcos e 211 navios cristãs. Quando, no fim da tarde, uma trovoada termina o massacre, só 40 galeras osmanas fugiram, 94 deram a costa e lá foram queimadas. Segundo uma fonte - há outras - os cristãos só capturaram 3846 Turcos. 26144 homens que lutaram sob a bandeira da meia-lua ou foram obrigados de remar as suas galeras como escravos, foram mortos."

    (Ekhart Berckenhagen: Lepanto 7.10.1571 - Blutigster Tag globaler Marinehistrie, Deutsches Schiffahrtsarchiv, Bd.19, Bremerhaven 1999)
    16.4.04
    Nota na prisão

    "É o privilégio e o carácter dos fortes, que conseguem pôr as grandes questões decisivas e tomar uma posição clara em relação a elas. Os fracos têm que escolher sempre entre duas alternativas que não são as suas."

    (Dietrich Bonhoeffer)
    ______________

    Dietrich Bonhoeffer, pastor e teólogo alemão foi enforcado no dia 9 de Abril 1945 no KZ Flossenbürg.
    .


    Castel del Monte

    15.4.04
    Nada menos do que a verdadeira coisa!

    Velhos, derrotados, miseráveis...
    Com dezasseis anos, quem achei mesmo miserável eram os adultos que me envejavam a esperança.
    Que diziam felicidade era ter esperança.
    Queria lá saber da esperança, queria aquilo pelo que esperava!

    Etiquetas: ,

    Comendo na mesa dos outros:

    "Dois bloggers sentam-se num café.
    Um de mãos vazias, o outro equipado com um saco de plástico e uma daquelas redes de apanhar borboletas.
    Quando os posts começam a cair do tecto, o primeiro vê tudo muito claramente e, em silêncio, recolhe os que interessam, abrindo a boca.
    O segundo é como um cego, não vê nada, e lança-se furiosamente contra o ar, ora agitando a rede, ora gritando como um desalmado, na esperança de apanhar qualquer coisa, por mais insignificante que seja."

    Rui Manuel Amaral no Quartzo
    14.4.04
    .


    Playmate da semana: Thinking nude (Liechtenstein)
    13.4.04
    Não negociarás!

    Friedrich II von Stauffen, imperador do Sagrado Império Romano de Nação Alemã viveu de 1194-1250. Residiu a maior parte da sua vida na Apúlia, no sul da Itália. (Entre os castelos que mandou construir há um edifício fantástico: Castel del Monte. Mas não era isso que queria referir aqui...)

    Era um homem culto e curioso, que preferiu a companhia dos árabes eruditos à dos toscos compatriotas cristãos dele. Isto não agradou nem ao Papa - mas a este nada do que um imperador alemão fez excepto a submissão completa, teria agradado - e também não a muitos dos seus compatriotas, que acharam essa atitude, aliás com razão, um indício de falta de fervor religioso do dirigente máximo do mundo da fé verdadeira.

    Friedrich era um homem que preferia a experiência à autoridade dos escritos. E assim decidiu por a prova a afirmação dos scholásticos que diziam que o homem falava mesmo, por natureza, hebreu (ou aramaico), e só a queda da Torre de Bábel que espalhou as línguas pelo mundo, era a causa de que se aprendia outras linguas como língua materna. Mandou isolar 30 recém-nascidos, e obrigou as amas a não falar com elas. Parece que para além do silêncio, foram também muito parcos em todo o resto contacto carinhoso. A experiência foi um fracasso: Não só não comecaram a falar hebreu, como morreram todas.

    Mas isso não é o acontecimento que lhe criou problemas. Este era outro.
    O Papa e o rei da França, Luis o Pio, tinham preparado mais uma cruzada para libertar Jerusalem do jugo dos infieis. E o imperador já tinha, há muitos anos, numa negociata política, prometido participar nela. Só que estava já arrependido disso, se uma vez tinha planeado cumprir a sua palavra, o que não é certo: A cruzada não lhe parecia boa ideia, nem do ponto de vista militar, nem do ponto de vista económico, e motivos mais nobres, como os religiosos, lhe faltavam.
    Mas cada vez foi pressionado mais por Luis e pelo Papa para cumprir a promessa e liderar a santa campanha.

    A forma como resolveu o problema, manchou para muita gente - não só da sua época - indelevelmente a sua reputação: Usando os seus bons contactos com o mundo muçulmano, comprou Jerusalem aos árabes.
    12.4.04
    .


    Franz Kline: Painting Number 2
    Evolução:

    Pois claro! O 25. Abril foi o desabrochar do Estado Novo!
    11.4.04

    Não tendo tempo para ler tudo o que interessa, tenho que ser selectivo com as minhas leituras. Mas depois de semanalmente a ver referida abundantemente nos blogues - como desta vez no Blasfémias - , decidi ler, desta vez, a coluna de Helena Matos.

    O artigo começa com uma análise que, embora não sendo original, tem bastantes indícios ao seu favor. A desmotivação, a efeminação (peço desculpa pelo termo que seguramente e com razão desagradaria a Helena Matos, mas é assim como o meu dicionário traduz "Verweichlichung") dos Europeus, depois de terem perdidos os seus impérios, e visto fracassar os seus grandes projectos ideológicos (fascismo e comunismo). Basta olhar a nossa volta para ver confirmada a análise de que muitos de nós se renderam a um desepero suave; instalados numa vida afinal de tudo (e ainda) bastante confortável, podemos permitir-nos não ter sonhos ou a energia de concretizá-los. E, já vivendo das nossas reservas, assumir um moralismo abstracto, ignorando displicentemente a nossa condição de parasita do sistema da qual - ainda - somos os beneficiados.

    Não gosto desta análise, mas compreendo que se possa fazé-la. Não é nova a ideia que nós, os Europeus, estámos na fase terminal da nossa civilização, da nossa cultura: demasiado ricos, preguiçosos, lúcidos mas impotentes, assistimos ao nosso declínio. Não era assim o fim do império romano? Do bicantino? (Uma coisa semelhante escreveu Oswald Spengler já nos anos 20 do século passado...)

    Estava preparado, depois do primeiro capítulo, de ouvir algumas ideias interessantes e eventualmente originais da "Kulturkritik". Mas o que veio a seguir, foi uma desilusão: Um misto de ideias avulsas e exemplos estapafúrdias (argumentos de defesa dum qualquer assasino que cometeu um crime passional, para ilustrar o declínio do sentido de responsabilidade dos Europeus!), o falhanço do projecto turísitico cultural do Vale de Foz Coa, a negação dos erros da descolonização portuguesa, a teologia da libertação (europeia?!), o perigo de deixar guerras (desculpa: intervenções militares) ao meio...

    É pena. Há aqui um tema sério: Como funciona a motivação colectiva para projectos de povos, da humanidade, tendo conhecimento dos resultados desastrosas que eles têm tido - na melhor das hipóteses - para os que não foram os seus autores (p.Ex. o imperialismo) e muitas vezes também para eles (fascismo, comunismo)?
    Que tenha levantada uma questão tão pertinente, para tentar convencer nos de que a resolvermos se acreditamos, sem hesitações, no projecto fresco, jóvem, vigoroso e prometedor da visionária administração americana.

    P.S.: Apesar de reconhecer que existe letargia entre os Europeus, não partilho com Helena Matos - obviamente - a difamação de todos os movimentos para um mundo melhor, que se exprimem por exemplo no Forum Social Mundial, como movimentos do Não.
    Ocidental, Europeu, de Esquerda

    Normalmente, quando refiro um artigo ou um post de outrem no blogue, é porque contém uma ideia com a qual concordo ou da qual discordo, ou que me inspira para uma ideia própria...
    Hoje, faço uma excepção. No seu Retrato da Semana António Barreto consegue descascar tudo e todos, sem apresentar uma sombra de ideia.
    "It's long, long ago, and hopefully it isn't true."

    Não estou convencido de que o autor desta frase tem razão de estar preocupado. Não penso que a veracidade histórica ou não do evangelho realmente importa. Embora percebo que seria reconfortante para o crente ter provas seguras dos acontecimentos históricos, não os acho essenciais. O que intessa, é que podia ter acontecido assim. (E desconto, com a-vontade, os milagres...)
    Como resposta ao que eu devo fazer, esta possibilidade basta.
    Mesmo importante para mim é, no entanto, que foi o Homem, que viveu a vida relatado nos evangelhos. Que se ofereceu. Só por ele ter sido Homem, a sua vida pode ser um desafio para mim...
    9.4.04
    Sacrifício ou Ressureição?

    Qual é a razão teológica do facto de que para os evangélicos - assim pelo menos aprendi - o feriado mais alto do ano é a Sexta-feira Santa, e para os católicos o Domingo da Páscoa, o dia da Ressureição?

    Etiquetas:

    Caroline says II

    Caroline says
    as she gets up off the floor
    Why is it that you beat me
    it isn't any fun

    Caroline says
    as she makes up her eye
    You ought to learn more about yourself
    think more than just I

    But she's not afraid to die
    all of her friends call her Alaska
    When she takes speed, they laugh and ask her

    What is in her mind
    what is in her mind

    Caroline says
    as she gets up from the floor
    You can hit me all you want to
    but I don't love you anymore

    Caroline says
    while biting her lip
    Life is meant to be more than this
    and this is a bum trip

    But she's not afraid to die
    all of her friends call her Alaska
    When she takes speed, they laugh and ask her

    What is in her mind
    what is in her mind

    She put her fist through the window pane
    It was such a funny feeling

    It's so cold in Alaska
    it's so cold in Alaska
    It's so cold in Alaska

    (Lou Reed)
    8.4.04
    .


    Luis Barragán e Mathias Goeritz: Torres Ciudad Satélite

    Mathias Goeritz conta que nos anos setenta o arquitecto e crítico Philip Johnson os visitou em Mexico City, e eles lhe mostraram as torres. Johnson duvidava que uma escultura tão abstracta podia colher a aprovação da população. Ouvindo isso, Goeritz chamou ao calhas um transeunte, um homem simples só de calças e camisa, com sapatos gastos, e perguntou-lhe o que achava das torres.

    "Las torres? - Sonos nosotros!" respondeu este.

    Johnson nunca deixou de acreditar que a resposta foi encomendada e o homem pago para aparecer no momento certo para dizer essas palavras ao poderoso crítico americano...
    "E saiu e chorou amargamente."

    Essa é a frase que talvez mais me comove em toda a Paixão...

    Etiquetas:

    7.4.04
    Classe Média

    Há algum tempo que estou a espreita para uma oportunidade de linkar um post do Classe Média. Porque é mesmo um blogue muito bom. Mas não me foi fácil encontrar um. Se me perguntam, também não me é fácil determinar porquê. - Julgo que se deve ao seu estilo: todos os posts têm uma lisura tanto linguística como argumentativa, que acaba de ser algo inibidora. Nunca comete erros, nunca abre um flanco. Sente-se que aí está um observador inteligente e muito atento, com um olhar aparentemente intimista, mas que só iluda os desprevenidos: Não há aqui descontos para ninguém, o olhar continua implacável.
    Talvez por isso senti-me tão lisonjeado, quando descobri que arrumou o Quase em Português na sua sua lista de links, por uma insondável razão, na Alta Sociedade...

    Aproveito agora para recomendar a série de posts sobre as suas férias num holiday-resort no Brasil, as Notas Nordestinas.
    Um problema e a sua solução

    "Uma chefe de departamento experiente e inteligente, que estava habituada a tomar as suas decisões autonomamente, tinha problemas crescentes com um dos seus superiores. Assim como ela própria descreveu o problema, irritava o seu ar confiante e enérgico o seu superior e fê-lo sentir-se inseguro, de forma que ele mal deixava passar uma oportunidade de reprová-la, especialmente em frente de terceiros. Isto indignava a de tal maneira que ela assumia uma postura ainda mais distante e arrogante perante ele, à qual ele ainda reagiu com mais do mesmo desprezo, fechando assim o círculo vicioso do seu jogo sem fim. O conflito chegara aparentemente a um ponto, em que ele estava decidido de exigir ou a recolocação ou o despedimento dela e ela planeava de demitir-se, para se antecipar dele também nisto.
    Sem que se explicaram as razões para isso, recomendavam-lhe para aguardar o próximo conflito, e depois aproveitar a primeiro oportunidade para falar com ele entre quatro olhos e fazer, com embaraço visível, mais ou menos a seguinte confissão: "Já lhe queria dizê-lo há muito tempo, mas simplesmente não sei bem como - é algo louco, mas quando me trata como o fez há pouco, isso excita-me - não sei porquê, talvez tenha a ver com o meu pai", e depois deixar o seu gabinete em fuga.
    Primeiro ela ficou horrorizada com a ideia devido à sua pudícia (que de qualquer maneira dificultava as suas relações com homens), mas depois começou a aquecer para ela e finalmente considerou a tão engraçada que mal pôde esperar de pô-la em prática. Mas quando apareceu na proxima sessão, só pôde relatar que não chegou a ter oportunidade para isso, porque a postura do seu superuior tinha mudada dum dia para outro e que ele desde então se comportava de forma correcta e pacífica."

    (Watzlawick, Weakland, Fisch: Change. Principles of Problem Formation and Problem Resolution.)

    Etiquetas:

    .


    Playmate da semana: ... (Manara)
    6.4.04
    "Komm'se rein, dann könn'se rausgucken!"
    "Entre, assim pode olhar para fora!"
    Mas como é que eles sabem que os significados são falsos?

    "A semiomania consiste na tendência para ver símbolos e prenúncios em tudo o que é objecto, facto e atitude. O doente converte-se, para consternação daqueles que lhe estão próximos, numa mistura de vidente, discípulo de Saussure e prognosticador de almanaque. Para o infeliz que é acometido por este mal, qualquer frase está pejada de segundas intenções, a mais inocente peça de mobiliário urbano aparece como um foco de tenebrosas presciências, a menos improvável conjunção de eventos conota uma realidade extraordinária e oculta. Os falsos significados que o doente julga decifrar na lisura do mundo tanto podem corroborar os seus medos profundos como encorajar as suas esperanças mais loucas. Em qualquer dos casos, a alienação rápida e irreversível é um desfecho inevitável. Não é comum que os indivíduos com esta síndrome representem um perigo para a sociedade."

    encontrado nUm Blog sobre Kleist via O Proletário Vermelho
    Sísifo

    Não tínhamos conseguido entregar o prémio. Ainda, com custo, identificáramos a morada, apesar da sua menção incompleta na declaração do autor.
    Por uma curiosidade talvez um pouco excessiva, desloquei-me pessoalmente para a casa do misterioso vencedor. Era uma pensão.
    Não, o senhor não estava em casa. Sim, a senhoria também achava estranho, o inquilino, um senhor já de alguma idade, não costumava ausentar-se por tanto tempo. Era um senhor pacato, afável, mas mesmo depois de tantos anos, não podia dizer muito dele.
    Não foi preciso um esforço grande para conseguir que ela me mostrasse o quarto. Um quarto de escritor. Repleto de livros, dossiers, cadernos, de pilhas de folhas. Com curiosidade penetrei o que se me revelou como uma obra vasta, embora obviamente não publicada. Mas era uma obra de fragmentos. Inúmeras primeiras páginas, inícios de contos ou de romances, versões e versões ou tentativas de poemas. Redigidas, anotadas e corrigidas vezes sem conta.
    Entre eles encontrei, numa única folha solitária, manuscrita e sem emendas, o texto que ganhara o nosso concurso de mini-histórias:

    Um dia Sísifo esqueceu que era Sísifo. Aí deu por si, como estava sentado no cume, a gozar, despreocupado, a bela vista.
    __________

    Esta história, quase em português, ganhou também o concurso de mini-histórias da Ene Coisas.

    Etiquetas: ,

    5.4.04
    Gut ist nicht gut genug! *

    Estar sedento de saber a avaliação que outros fazem de mim é prova de insegurança e de falta de independência.
    Mas será se suprimo, por saber isso, com custo a minha curiosidade, isso prova a minha auto-confiança e aumenta a minha independência intelectual?

    Quando vi, há semanas, o quadro Blasferas do Blasfémias fiquei, por isso, caladinho mas com expectativa, a espera da vez do Quase em Português. O que agora chegou. Fiquei contente por isso, e fiquei contente de ver que a avaliação não é má.
    Mas o contentamento nem durou um minuto até que comecei a sentir que podia ter sido melhor... ou pelo menos não tão uniforme: Mais quatros e mais dois' ou uns teriam me dado a possibilidade de categorizar os avaliadores em mesmo inteligentes e outros nem por isso...

    E se a Sara Müller agora subiu na minha estimação, isto diz alguma coisa sobre ela ou sobre mim?

    (* Good isn´t good enough!)
    Kurt Cobain morreu há dez anos

    E a nossa vida, o mundo, continua, absorvendo e nivelando implacavelmente tudo:
    Nos corredores da Cirurgia II, no Hospital Santa Maria, há música ambiente para pessoal, reconvalescentes e visitas. Ouve-se lá Nirvana: Smells Like Teen Spirit.
    4.4.04
    .
    Nunca tinha participado num - por isso, quando soube do concurso literário lançado pelo Luís Ene, que tinha como tema exactamente isso, concursos literários, pensei que não iria participar por falta absoluta de experiência. Mas depois consegui contornar o problema e submeti esta história:

    Loreley

    A coisa mais próxima de um concurso literário em que participei foi um "seminário" sobre "amizade, amor, sexualidade", organizado pela Juventude Católica da minha terra. Tinha quinze anos e participei nele pela razão mais nobre de todas: para conquistar o amor de uma menina.

    Ela era a filha do médico da vila, tinha catorze anos, olhos verdes que costumava esconder por detrás dos seus longos cabelos loiros; e era de uma beleza que não era deste mundo. Em vez de me prolongar aqui em descrições que não lhe podem fazer justiça, digo só isto: Com ela deve ter-se parecido a Loreley, aquela ninfa mítica do rochedo no Reno, que prendia a atenção dos barqueiros de tal maneira que os fazia naufragar.

    Amava-a. E o meu amor transformava o mundo. De noite, as estrelas luziam num céu mais fundo, e em toda a parte havia sinais que me deram confiança: Estranhos cumprimentavam-me na rua e as outras raparigas sorriam-me como nunca antes me tinham sorrido; e até os semáforos se tornavam verdes para mim, quando por eles passava nas minhas caminhadas.

    Mas ela era distante. Sabia onde ela morava, mas aquela mansão de janelas altas, cuja luz por vezes espreitava entre árvores velhas, parecia-me inacessível. E ela não era da minha escola; não pertencia ao seu grupo de amigos, ao qual também não via maneira de aderir.
    Por isso decidi entrar na Juventude Católica, de qe ela era membro; e os meus pais, evangélicos, não acharam mal; menos ainda desde que o nosso Pastor lhes deu ocasionalmente a conhecer a sua opinião sobre a pena de morte e de que se devia cortar o Idi Amin em fatias finas.

    Quando então foi anunciado o tal seminário e verifiquei que também ela se inscrevera, soube que tinha chegado a minha oportunidade para lhe demonstrar o meu valor, e até no domínio que interessava!
    Havia sessões de conversas, nas quais o diácono que moderava o seminário aproveitava para nos avisar dos males da masturbação, do petting e do sexo pré-matrimonial. Não é que estavamos propriamente interessados naquela mensagem, mas ficamos todos deslumbrados e gratos para poder ouvir e falar, em público, de tais coisas!
    Com ousadia contribuía com algumas opiniões bastante livres no dado contexto, e que obviamente não provinham da minha experiência mas das teorias liberais que trazia de casa. Claro que também cada intervenção era minuciosamente calculada para servir o objectivo que me levara a participar no seminário antes de tudo o resto.
    E assim chegou o momento de que agora me lembro: o diácono pediu a cada um de nós que escrevesse num papel, sob anonimato, as qualidades que achávamos as mais importantes no namoro. Depois recolheu os papéis e transcreveu-os para o quadro.
    Apareciam com várias nomeações os conceitos de fidelidade, amor, confiança, honestidade, amizade e afins; e aparecia - isolado, como esperava - o meu: o humor.
    De facto, esta qualidade, até mereceu ao diácono uma referência elogiosa, e também houve ocasião, sem que isso parecesse demasiado forçado, de levantar na discussão seguinte o meu anonimato.

    Foi neste dia que arranjei um amigo para a vida. Um outro rapaz, que não conhecia e que escrevia poesia - uma arte em que pouco depois de sabé-lo também eu me experimentava -, mostrou-se muito impressionado pelo meu contributo.
    Quanto à rapariga em questão, o resultado foi outro. Continuava a não me ligar nenhuma. E umas semanas mais tarde ela tinha um namorado: um tipo carrancudo, com nem um quinto do meu espírito e da minha graça, provava-me que me enganara redondamente no que as raparigas apreciavam num homem.

    Vários anos mais tarde, ela e eu reencontrámo-nos por acaso, ambos estudantes, numa outra cidade. E desta vez caía na sua graça. Mas isso só aqui conto para reestabelecer a minha honra enquanto homem e não tem nada a ver com a história relatada.
    Ou talvez tenha, sim.

    Etiquetas: ,

    Leitura desconcertante

    Li os últimos posts do Timshel (do 3.4.4) e só agora apercebi-me porque ele recusou há dias, num comentário a um post meu, como quase ofensivo a caracterização como sensato. Só agora, e no confronto com o que ele escreve e/ou cita, apercebi-me do altissimo grau de aburguesamento, de que sou vítima: Qual místico, espírito verdadeiramente lívre, qual carapuça! Um pequeno burguês, cobardamente preocupado com o seu bem-estar e o dos seus.

    Isto não era sempre assim. Houve uma altura em que estava genuinamente preparado (bem, afinal não fiz prova disso...) para sacrificar tudo, mesmo tudo, para a coisa certa. Agora só pensar nisso, mete me verdadeiramente medo. Não só para mim como para todo o mundo...
    Assumo hoje, sem reservas, o meu lado da barricada: o lado de cá, o lado do compromisso, da (pequena) cidadania.

    Mas não consigo suprimir por completo um sentimento de derrota, e de genuino auto-desprezo por tê-la sofrido.
    3.4.04
    .


    Piero della Francesca: Madonna

    Reconheço que a imágem está postado aqui um bocado à despropósito: Não está relacionado com qualquer dos últimos posts, e para a época uma cena de crucificação estaria mais apropriada. Mas agora fica...
    Ando distraido!

    Era preciso que o Blogo Social Português me chamou a atenção para esta iniciativa - de arquitectos.

    Cujo tema era isso mesmo: Concursos literários. Uma das histórias vencedoras é esta:

    Rascunhos

    Quando rasgo um papel fico sempre com pena remorsos. Pior ainda quando leva lá rascunhada qualquer palavra escrita. Ainda que seja só uma palermice, como esta, parece-me sempre injusto deitar a perder um pensamento. No entanto, nunca deitei a mão a um cesto para recolher uma folha amarrotada. Falta-me a coragem de enfrentar o que já é passado. Sou mulher de olhar em frente. (apagar esta ideia, fez-me azia)

    É estranho, porque não tenho medo do escuro, (só às vezes), nem das alturas, ou de aranhas... tenho muito medo de não me rever nas letras debitadas em momentos de devaneio. É que, quando escrevo sinto-me regressar ao início do século XX, qual surrealista em possessão artística. Corto as ligações à realidade aparente e vagueio flutuo qual budista em nirvana. Sinto-me agitada, mas numa serenidade que parece perpétua. E, na maioria das vezes, parece-me que escrevo com sem sentido. Mas sinto-me quase sempre feliz.

    Esta é uma noite diferente, porque aceitei o desafio. Escrevo, releio, corrijo a vírgula e o ponto final. É melhor apagar a ideia. Rasurar o que não interessa. Já está. Este não vai para o cesto cinzento ao lado da pilha das revistas velhas. Fica aqui. Há um concurso literário a decorrer. Nunca se sabe se eles gostam de textos rasurados...

    Susana Paixão
    2.4.04
    Travel TV

    No canal People+Arts há um programa - nem sei o nome -, em que uma rapariga branca, as longas pernas habitualmente em calções, e toda vestida em roupas descontraidas de férias, experimenta, em nosso lugar, os prazeres dos paraísos turísticos do mundo.
    Ela espreguiça-se debaixo de masságens aplicadas por mãos diligentes e bem treinadas, e a câmara capta em grande plano a sua expressão do prazer, enquanto ela nos relata as suas sensações em tempo real. Ela experimenta, sempre entusiasmada, as diversões e os desportos que são a especialidade do local e saboreia para nós refeições exóticas - preparadas com dedicação e perícia tradicional pelos cozinheiros do holiday resort - elogia as generosa- e exaustivamente; e ela passeia-se alta, bela e confiante, qual rainha afável, mas mágicamente intocável, no meio do povo nas ruas, em mercados ou basares coloridos, acompanhado por um "friend" nativo, quem com servilidade discreta lhe faz o guia e lhe apresenta todas as maravilhas encantadoras da sua pátria.

    Não é que o corpo da rapariga, apesar de perfeito, me inspira especialmente para fantasias eróticas. Mas desde a primeira vez estou a ansiar pelo dia em que todos estes pobres diabos deixam cair, de repente, a sua atitude servil e se atiram para cima dela, e se vingam de tudo, um de cada vez...

    Etiquetas: , ,

    1.4.04
    Paraísos

    Fiquei na dúvida em relação ao post anterior: E todas as representações do paraíso, feitos pelos grandes artistas, nomeadamente os medievais? - Mas só me lembrava de alguns, que ou representavam a expulsão do paraíso ou a queda no pecado. Ou seja: O paraíso puro, só felicidade, sem o prenúncio ou a consunção da desgraça, isto realmente existe?

    Nada mais fácil de verificar: digitar no Google, no modo de imágens, "paraíso"...

    A primeira imágem representando o paraíso bíblico era o Nº103: Tinha me esquecido do turismo! A imágem, moderna e não pirosa - mostra a oferta da maçã...

    A continuação da pesquisa na pintura religiosa fica para outro dia.

    This page is powered by Blogger. Isn't yours?

    Creative Commons License