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  • 29.4.07
    Ceuta

    Histórias passadas. Desta vez, L. ia entrar em Marrocos via Ceuta, aquele enclave espanhol no continente africano, e de carro. Vinha com os filhos, com cartão de crédito, telemóvel, e ao encontro com amigos que já teriam arranjado estadia para todos em Chefchaouen, quando lá chegava. Seria um turista sem ambição de ser outra coisa. Não estava interessado em comprar haxixe, e estava longe da falta de juízo e cautela que, na altura, só por sorte não tinha dado mau resultado. Tinha conseguido apanhar o barco a horas, e não contava com mais problemas.

    Mas quando o primeiro marroquino lhe bateu à janela, acenando com papeis, sentiu o velho reflexo de raiva e desprezo. Não tinha estado a espera. Devia, obviamente, mas não tinha pensado nisto. O que queria este? Pelos vistos, queria ajudar a preencher formulários, o que, de facto, seriam provavelmente necessários de preencher. L. não parou, continuava em passo de caracol, obrigando o homem a correr ao lado do carro. Era um indivíduo de talvez vinte e cinco anos, vestido de modo ocidental, mas muito sujo. Qualquer arrumador de Lisboa faria melhor figura. E o papel que agitava tinha ar de já ter sido tirado do bolso muitas vezes, vincado e com as margens em franjas. Se seria preciso recorrer aos serviços dum destes tipos, seguramente não eram as deste. L. acelerou um pouco, para deixar o homem para trás. Porém, ao aproximar-se da fronteira, ficou claro que aquele só tinha sido o primeiro, o mais desesperado membro dum bando de assediadores, que pairava sobre as filas de viajantes, pronto para atacar qualquer turista que dava algum sinal de desorientação.

    L. tinha de escolher entre várias faixas de rodagem, separadas por rails, e como não havia sinalização que se compreendia, optou por uma que lhe parecia mais livre. Logo vários dos homens começavam aos gritos e a sinalizar-lhe que fez mal. L. ignorou-os, mas parou quando um agente da autoridade o mandou, com gestos enérgicos, encostar o carro.

    Contrariado, avaliou a situação. As filas à frente da pala que marcava a fronteira, e debaixo da qual se encontravam as barracas onde se tratava das formalidades, não se distinguiam entre elas. Não se vislumbrava uma ordem. Alguns carros pareciam estacionados, outros só parados, com pessoas lá dentro, enquanto os seus condutores estavam à frente das barracas, a tratar da papelada. De vez em quando, um ou outro voltou e um carro atravessou a fronteira. Só pontualmente via-se, deste lado da pala, um representante da autoridade. Impossível saber a quem havia de solicitar informação sobre o procedimento a seguir, ou as fichas que havia de preencher. Senão aos mediadores. L. começou a perceber. Apesar da aparente lógica arquitectónica que sugeria que o atravessamento da fronteira se processasse em paralelo e de forma igual para cada faixa, à semelhança duma estação de portagem, o sistema praticado não correspondia a isso. Este seguia ainda ao modelo antigo, em que cada viajante tinha de deixar o carro algures, e de se deslocar às diversas entidades para solicitar os necessários papeis, carimbos e vistorias. Compreendeu o princípio, que conhecia de outras experiências passadas. Mas como não sabia quais os procedimentos requeridos e qual a sua sequência, não podia resolver o assunto sem mediador.

    O guarda que o mandara encostar não falava francês, nem espanhol nem inglês. Não falou de todo, em boa verdade. Não mostrou nenhuma inclinação de lhe explicar o que fizera mal. Mas parecia satisfeito, por enquanto, com ter parado o carro de L. e dirigiu-se para outros lados. Entretanto, vários mediadores competiam para obter a atenção de L..
    Este tinha-se apercebido que o bando dos mediadores não era uniforme. Havia uns que aparentavam maior autoridade, um estatuto superior. Não corriam atrás dos carros, deambularam, pelo contrário, com lentidão ostensiva entre eles, escolhendo, se o seu conselho de momento não foi procurado por membros inferiores da sua ordem, de forma discricionária a quem dedicavam a sua atenção. Se os vulgares mediadores eram os frades ao serviço da divindade da burocracia da fronteira, estes eram os seus sacerdotes.
    L. dirigiu-se a um destes, ignorando todas as outras tentativas de o abordarem. O homem explicou-lhe, em espanhol, que se encontrava de facto numa fila reservada para marroquinos que regressavam duma visita só à Ceuta, sem terem deixado Africa. Mas acrescentou, após um olhar para o guarda que se afastava, que, por excepção, poderia deixar o carro no lugar onde estava. Se tinha os formulários de entrada preenchidos?
    Não tinha.
    O guia de turismo – assim o identificava um crachá aparentemente oficial – deu-lhe cinco fotocópias em bastante bom estado, e fez-lhe sinal de as preencher. Depois de lhe avisar que quando pronto ir ter com ele, retomou as suas deambulações. O porte aristocrático com que vestia o cafetão vermelho escuro compensava quase, ao longe, a discutível limpeza deste vestimento, tal como o fez e a expressão severa da cara debaixo deste quase permitiam pensar que pertencessem a um senhor. Só os traços derrocados, a pele avermelhada e inchada levaram L. a perguntar-se se este senhor não teria, nos seus cinquenta anos, já se rendido em demasia ao álcool que se vendia em Ceuta.

    Depois de preenchido os formulários, no chão – a esferográfica tinha se recusado a funcionar na parede –, meteu-se na fila à frente do barracão que o guia lhe tinha indicado. A janela dava para a faixa de rodagem, que estava ocupada por pessoas. Metade delas eram mediadores, e L. ficou com a impressão que foi várias vezes defraudado do seu lugar na fila, mas não reclamou porque admitia que os outros só voltaram para concluir um processo em curso. Ao esperar pela sua vez, enquanto o funcionário fardado na barraca digitava, com o dedo indicador direito, o conteúdo das fichas dos viajantes no computador, L. contemplava a chávena de café que poisava em cima duma pilha de impressos na mesa, e interrogava-se se o homem ainda a ia beber. O líquido repugnante, preto e opaco, seguramente frio, parecia lá estar já desde há dias, e a chávena, tal como o pires grosso, aparentavam estar de tal maneira impregnados com os restos de outros cafés das semanas, meses e anos anteriores, que nem mesmo uma improvável limpeza mais rigorosa, uma lavagem com água a ferver, já os tiraria.
    Chegou a sua vez. O funcionário tomou realmente um golo da chávena de café, e aceitou os papeis de L.. Separou os passaportes das fichas, e começou a folheá-los com calma rotineira, interessando-se pelos vistos de outras viagens neles contidos. Introduziu os dados no computador, carimbou fichas e passaportes com um número e devolveu-lhe tudo. Quando lhe fez sinal para se ir embora, ainda não lhe tinha olhado uma vez nos olhos.

    Na barraca seguinte havia uma mulher, a quem L. entregou os documentos do automóvel e o correspondente formulário, o que esta lhe logo devolveu, para preencher novamente o triplicado, que não estava suficientemente bem legível. No preciso momento em que L. o tinha feito e lho quis entregar, a mulher fechou a janela a sua frente e saiu. Voltou depois de quinze minutos. Então recebeu os papéis e fez-lhe, com um tom de cerimónia cínica, só uma pergunta. Se o carro era a sua propriedade. - Da sua empresa –, respondeu L.. A mulher disse nada, escrevinhou algo em árabe no verso do triplicado, deu-lho, e mandou-o embora.

    O próximo guichet? Outra vez foi necessário consultar o sacerdote. O homem no próximo guichet tinha um ar mais simpático. Mas ao ler a nota no verso do papel do carro, fez uma cara preocupada e disse a L. que havia um problema sério. A nota que a mulher escrevera dizia que a entrada do automóvel estava recusada, pois o viajante não era o seu proprietário. L. pegou nos seus papéis e procurou o seu guia. Este explicou-lhe que o problema seria mesmo real, mas que arranjava solução. Chamou um outro colega, também com cafetão e identificação de guia oficial, que seria a pessoa indicada para resolver esse tipo de problemas. Havia de obter-se uma autorização excepcional do chefe da alfândega, baseado no facto de que o nome de L. constava no nome da empresa proprietária do carro, e baseado nas suas, do guia, boas relações com este funcionário.
    – Depois, quando está resolvido, não se esqueça de mim.
    – Claro que não.

    Curiosamente, a partir deste instante, qualquer nervosismo e raiva abandonaram o L. Porquê? Não sabia, mas talvez era esta a razão: Tinha mudado de estatuto. Não era mais um simples e honesto turista, vítima de assédio injusto, mas um viajante com uma irregularidade objectiva nos documentos, para cuja solução precisava de se servir do sistema corrupto. A relação era agora uma de negócios entre iguais. Isso permitia-lhe ver então com clareza e descontracção o que iria acontecer a seguir. O guia iria convencer o chefe da alfândega para resolver o problema. Isso iria demorar algum tempo, para que não se subestimasse a dificuldade e para valorizar a recompensa. No fim, L. pagaria ao guia, e este faria, em devida altura, contas com o chefe. L. já não duvidava que o seu caso estava em boas mãos.

    O novo guia, de cafetão azul, mandou L. aguardar e deslocou-se sozinho para o edifício da alfândega, de que voltou de mãos vazias. Tinham de esperar. Dez minutos mais tarde o chefe saiu, mas só para se ocupar do caso dum outro viajante, com a devida exaustão, e com várias interrupções, em que o chefe se deslocou para outras bandas, em afazeres inconcebíveis ao L., mas seguramente igualmente importantes.
    Quando voltou, o guia retomou as tentativas de abordá-lo, fazendo a L. sinais discretos com a mão, ora de aproximar-se, ora de afastar-se, a procura da justa medida para chamar a atenção do chefe, mas sem lhe faltar o devido respeito ou até irritar o homem com uma atitude demasiado impertinente.
    Finalmente o chefe dignou-se de ouvir a explicação, pela boca do guia, do caso de L. Acenou pensativamente uma ou duas vezes a cabeça, o que era bom sinal. E foi se embora.
    Mas quando voltou desta vez, e depois de mais uma aproximação deferente e bem sucedida por L. e o seu guia, o chefe fez realmente um rabisco no papel com a nota da mulher desagradável.

    A partir daí foi tudo fácil. Voltar ao contentor do homem simpático, esperar a sua vez, mostrar o rabisco e receber os carimbos da imigração nos passaportes.
    Satisfeito, L. tirou a carteira, mas o guia disse rapidamente, – Aqui não! Entre primeiro no seu carro! – No carro L. abriu a carteira e procurou uma nota de dez euros. – Dê-me uma nota de vinte, e está bem! - disse o guia. L. deu-lhe uma nota de vinte e quis arrancar. Apareceu o primeiro guia, a reclamar também o seu honorário, mas L. respondeu que se entendesse com o seu colega, e arrancou mesmo.

    A seguir à pala ainda foram mandados parar mais uma vez, para uma revista à bagageira. Um pró-forma. Depois entravam na via rápida em direcção a Tetouan.

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