28.10.06
Os últimos dois posts não são sobre o aborto. Embora o penúltimo, Em defesa da burguesia, critica a forma como o debate sobre o referendo é conduzido. O Zé Maria Brito deixou-me um simpático convite nos comentários a este post, para visitar o blogue Razões do Não. Devo desde já dizer que o próprio convite como os posts que refere aqui e aqui, são um exemplo de civildade e inteligência, com que este debate pode ser conduzido. Quanto a minha posição, votaria sim, se pudesse participar no referendo. Das razões, que expliquei há ano e meio atrás, aqui um resumo: "Há um estado, em que a vida humana (o espermatozoide é vida humana...) ainda não merece a nossa solidariedade e protecção, e há outro, em que ela a merece em todo o caso e a todo o custo. O que não vejo, é um ponto nítido e indiscutível entre estes dois estados que marca a fronteira categórica, e menos ainda que este tem de ser a fecundação." Timshel, admito que a tua resposta apanhou-me desprevenido. Há aqui tantas afirmações que oiço pela primeira vez, premissas e conceitos históricos tão longe daqueles que eu aprendi e tomei por mais ou menos consensuais, que ainda não rearrumei a minha cabeça. Aprendo que a máxima “liberdade, igualdade, fraternidade” está erradamente creditada à burguesia, pois na realidade devemo-la ao cristianismo - posso concluir: à Igreja? Será que a revolução burguesa, ao avançar em concreto com a implementação destes valores, foi afinal uma manifestação histórica deste nucleo duro do cristianismo de que falas, que, como dizes, sempre os tinha, apesar de até então pouco ou nada disto se tinha notado na vida dos fieis no decurso de milénio e meio? - Não pode ser, porque a burguesia é, como também dizes, a fonte de todos os males, logo, só por uma perversa e diabólica inversão dos sentidos pode ela ter usurpado estes valores, tão completamente, que hoje todos, excepto uma ínfima minoria esclarecida, acham que a liberdade, igualdade e fraternidade são valores da burguesia e filhos dum iluminismo tendencialmente anticlerical. Uma mentira histórica que ainda aguarda ser devidamente desmantelada. Aprendo que afinal o Nazismo e o Estalinismo são ideologias burguesas, só não se assumiram como tais! Que o Nazismo foi burguês porque defendeu o Darwinismo Social, sendo esse, como me ensinas, a característica principal da burguesia. (Vou pegar no meu Kant, Goethe, Thomas Jefferson, e re-arrumá-los na minha biblioteca. Por engano relacionei até hoje as suas ideias com a burguesia.) Também o Estalinismo foi burguês, aprendo eu, porque foi marxista! Sendo o Marxismo uma ideologia burguesa, porque é materialista e determinista e ainda porque o próprio Marx foi um burguês. Que nunca me lembrei disto antes! E assim acabo por compreender que, no fundo, devem-se à burguesia os milhões de mortos do Holocausto, dos delírios racistas, também os do Gulag, os das experiências económicas estalinistas, sejam elas reformas agrárias falhadas ou a bem sucedida, embora algo dispendiosa em vidas humanas, política de colonização forçada da Sibéria. Também a supressão do livre pensamento, a Gestapo, a Checa, os processos espectáculo de Moscovo dos anos 30 são fenómenos característicos da sociedade burguesa, dos que a humanidade teria ficado poupada, se ela se tivesse mantida no seio da Igreja, e se confiada ao seu tradicional guardião benevolente da liberdade, igualdade e fraternidade, que foi o Santo Ofício. 26.10.06
Timshel, li o post que recomendaste e, já que conhecemos nos um pouco, não me surpreendeu inteiramente que o gostaste, mas discordo profundamente. Não com a alegação que a cultura burguesa tende a dessacralizar tudo, a subordinar tudo sob o domínio da racionalidade económica, a coisificar todas as acções e expressões da vida. Essa tendência, que Max Weber tão poeticamente chamou o desencantamento do mundo, também noto. Mas discordo profundamente de que ela resulta numa cultura da morte. Isto é um argumento demagógico que carece de qualquer fundamento histórico e sociológico. A propensão pela matança é, ao contrário do que pareces crer, tudo menos um exclusivo das culturas laicas. Falando desde já do aborto, lembro que o aborto é uma prática milenar, ora proibida ora aceite em inúmeras culturas ao longo da história, todas elas sagradas, sendo que a dessacralização do mundo é um fenómeno histórico mesmo recente. Se generalizarmos e não nos limitamos à questão do aborto, é ainda mais fácil demonstrar que nenhuma das sociedades humanas ao longo dos milénios, com a excepção talvez da cultura hindu (essa curiosamente “abortista”) e a budista e talvez algumas menores que desconheço, se distinguiu por um respeito propriamente elevado pela vida humana. Pelo contrário, parece ser padrão que o tal respeito foi sempre bem selectivo, atribuindo-se pouco ou nenhum valor à vida dos que não lhes pertenciam, e dispondo da vida daqueles que lhes pertenciam com a maior desfaçatez, justificando-se esta em regra com o valor superior da comunidade e eventualmente ainda com a esperada recompensa no além. E relembro que as duas culturas do século XX, que se distinguiram como os maiores aniquiladores da vida humana, o nazismo e o estalinismo, eram tudo menos do que culturas burguesas e, pelo contrário, marcadas, troçando de todo o ateísmo oficialmente propagado, pelas características típicas de culturas religiosas. Tomando um exemplo contemporáneo: Quem negará hoje à sociedade da Coreia de Norte um cariz profundamente religioso? Ao contrário das burguesias ocidentais, ali toda a gente em todo o momento da vida está embebida e confrontada com o sagrado. Vais-me agora dizer que entre esta e a burguesa, aquela que está - materialmente ou espiritualmente - mais próxima da morte, é a burguesa? Não há nada como o sagrado que serve para desvalorizar a vida do indivíduo, do ser humano em concreto. Foi a burguesia, tão desprezada por ti, que emergiu estabelecendo o valor da vida humana como bem em si. Foi a burguesia que criou os direitos humanos, e que as fez respeitar, de forma insuficiente e imperfeita, concedo, e são as sociedades burguesas, entre todas, em que a vida está a ser objectivamente, hoje, mais respeitada do que em qualquer outra. Uma nota final: Tenho pena em ver-te, como tantos partidários do Não, atacar quem defende, como eu, o Sim no referendo como quem pretende promover o aborto, e não a sua descriminalização, fazendo crer que achas esta nuance um pormenor negligenciável, por verdadeira convicção de que se trata só dum pretexto, de que realmente os defensores do Sim é que querem abortar e não antes poupar às mulheres que abortam a perseguição criminal; ou o fazes, se não por isso, pela simples convicção maquiavélica que neste combate vale mesmo tudo, incluído qualquer simplificação perjorativa e distorção da verdade. Isto tudo na ocasião dum problema real, que é moral, também social, também de saúde, que não é de hoje nem de ontem, e em que não se coloca a escolha entre a luz e as trevas, mas a procura da melhor forma de solucionar um problema que se põe, queiramos quer não, para muitas mulheres, e em que não há uma escolha do bem, mas só a opção entre dois males. 25.10.06
Judith (Horst Janssen seg. Goltzius) 23.10.06
Isto aqui, que não vou chamar blogosfera, mas a vizinhança em que vocês e o QeP se inserem, também é o social: orienta, ilude, conforta, aborrece, e também cria responsabilidades e deveres. Como aquele de responder adequadamente a vossa calorosa recepção. Que cumpro com gosto. Sinceramente: Muito obrigado! Vocês também me fizeram falta. 20.10.06
Há dias comprei um monitor. Encontrei-me cedo, às nove menos um quarto, no parque do Lidl Xabregas, porque a Margarida me tinha avisado: “Tens de lá estar antes que a loja abre, as promoções esgotam-se num instante!” A cortina de alumínio do largo portão deste armazém estava semi-subida, à sua frente esperavam um jovem segurança e já um grupo de 20-30 pessoas. Gente de vária ordem, mas toda da população activa, creio eu, pessoas com vestes de trabalho, de escritório e também uns de fato-macaco, que, para poder aproveitar a promoção, tinham resolvido chegar hoje um pouco atrasado ao emprego; ou talvez elas estavam aqui a mando do patrão. Ainda reparei num jovem casal, aparentemente estudantes, ela muito grávida. O grupo não constituia fila, pelo que comecei a memorizar as caras que se encontravam na sua periferia, critério que escolhi para identificar os meus mais prováveis antecessores na ordem da chegada. Felizmente tive mais logo a melhor ideia de memorizar em vez disto as pessoas que vieram depois de mim. A primeira destas era um homem baixo e compacto, vestido de fato e gravata, um representante típico desta estirpe de pequeno empresário português, que se distingue dos quadros médios de empresas maiores, semelhantemente fardados, pela sua porte dominante e vagamente desafiadora. Às nove menos cinco a cortina de alumínio subiu por completo, e a supervisora de serviço juntou-se ao segurança. Ainda não libertaram a entrada. Só quando às nove em ponto destrancavam as portas de vidro, o nosso grupo, entretanto crescido para cerca de sessenta pessoas, se pôs em movimento. “Atenção, a entrada é apenas pelo corredor previsto, à esquerda!”, repetia a funcionária. Apesar disso só metade passou por ali, a outra metade atalhou pelos corredores das caixas não ocupadas. Aqui deram-se os primeiros empurrões. Mais cinco metros em frente, à altura das cervejas, o passo acelerado já tinha cedido ao trote. Chegados ao meio da loja estavamos em plena corrida. Também eu estava a correr, porém travado pela mulher grávida a minha frente, cuja lentidão amaldiçoei mas que me sentia inibido de ultrapassar. Isso fez, com o olhar enérgico posto em frente, o homem de negócios a nós os dois. Os primeiros tinham entretanto alcançado o fundo da loja, onde julgavam os artigos da promoção. E ouviam-se os gritos ofendidos: “Os monitores! Onde estão os monitores?!” Afinal os monitores não estvam ali, mas escondidos debaixo das duas únicas caixas ocupadas, perto da entrada, no lado oposto do corredor para onde nos tinham encaminhado. Após uns segundos de hesitação confusa, invertia-se o sentido da corrida, que prosseguia então com redobrada ferocidade. Pois os concorrentes mais determinados encontravam-se agora em posição de desvantagem, atrás dos moles e fracos. Pouco antes de chegarmos a uma das duas caixas abertas, o homem de negócios tinha alcançado a mulher grávida, que se dirigia à caixa dois, e a mim, que me aproximava à caixa um. Aqui fez uma escolha, talvez, num momento de fraqueza, cedendo a um instinto nobre: Optou por mim como pessoa a ultrapassar. Aproveitando-me de todos os meus 1.93m de altura, estiquei os cotovelos e impedi-o de entrar antes de mim no corredor da caixa. Comprei o penúltimo monitor em stock, o último calhou à mulher grávida. OK, não pus fogo à casa, e não vou pôr. Daqui em diante, vou usá-la ocasionalmente, como casa de férias, quando tiver tempo. Devo um sentido obrigado a todos, que insistiram em passar por aqui de vez em quando, e que me desafiaram para voltar. |
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