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  • 26.10.06
    Em defesa da burguesia

    Timshel
    , li o post que recomendaste e, já que conhecemos nos um pouco, não me surpreendeu inteiramente que o gostaste, mas discordo profundamente.

    Não com a alegação que a cultura burguesa tende a dessacralizar tudo, a subordinar tudo sob o domínio da racionalidade económica, a coisificar todas as acções e expressões da vida. Essa tendência, que Max Weber tão poeticamente chamou o desencantamento do mundo, também noto. Mas discordo profundamente de que ela resulta numa cultura da morte.
    Isto é um argumento demagógico que carece de qualquer fundamento histórico e sociológico.

    A propensão pela matança é, ao contrário do que pareces crer, tudo menos um exclusivo das culturas laicas. Falando desde já do aborto, lembro que o aborto é uma prática milenar, ora proibida ora aceite em inúmeras culturas ao longo da história, todas elas sagradas, sendo que a dessacralização do mundo é um fenómeno histórico mesmo recente. Se generalizarmos e não nos limitamos à questão do aborto, é ainda mais fácil demonstrar que nenhuma das sociedades humanas ao longo dos milénios, com a excepção talvez da cultura hindu (essa curiosamente “abortista”) e a budista e talvez algumas menores que desconheço, se distinguiu por um respeito propriamente elevado pela vida humana.
    Pelo contrário, parece ser padrão que o tal respeito foi sempre bem selectivo, atribuindo-se pouco ou nenhum valor à vida dos que não lhes pertenciam, e dispondo da vida daqueles que lhes pertenciam com a maior desfaçatez, justificando-se esta em regra com o valor superior da comunidade e eventualmente ainda com a esperada recompensa no além.

    E relembro que as duas culturas do século XX, que se distinguiram como os maiores aniquiladores da vida humana, o nazismo e o estalinismo, eram tudo menos do que culturas burguesas e, pelo contrário, marcadas, troçando de todo o ateísmo oficialmente propagado, pelas características típicas de culturas religiosas. Tomando um exemplo contemporáneo: Quem negará hoje à sociedade da Coreia de Norte um cariz profundamente religioso? Ao contrário das burguesias ocidentais, ali toda a gente em todo o momento da vida está embebida e confrontada com o sagrado. Vais-me agora dizer que entre esta e a burguesa, aquela que está - materialmente ou espiritualmente - mais próxima da morte, é a burguesa? Não há nada como o sagrado que serve para desvalorizar a vida do indivíduo, do ser humano em concreto.

    Foi a burguesia, tão desprezada por ti, que emergiu estabelecendo o valor da vida humana como bem em si. Foi a burguesia que criou os direitos humanos, e que as fez respeitar, de forma insuficiente e imperfeita, concedo, e são as sociedades burguesas, entre todas, em que a vida está a ser objectivamente, hoje, mais respeitada do que em qualquer outra.

    Uma nota final:
    Tenho pena em ver-te, como tantos partidários do Não, atacar quem defende, como eu, o Sim no referendo como quem pretende promover o aborto, e não a sua descriminalização, fazendo crer que achas esta nuance um pormenor negligenciável, por verdadeira convicção de que se trata só dum pretexto, de que realmente os defensores do Sim é que querem abortar e não antes poupar às mulheres que abortam a perseguição criminal; ou o fazes, se não por isso, pela simples convicção maquiavélica que neste combate vale mesmo tudo, incluído qualquer simplificação perjorativa e distorção da verdade.
    Isto tudo na ocasião dum problema real, que é moral, também social, também de saúde, que não é de hoje nem de ontem, e em que não se coloca a escolha entre a luz e as trevas, mas a procura da melhor forma de solucionar um problema que se põe, queiramos quer não, para muitas mulheres, e em que não há uma escolha do bem, mas só a opção entre dois males.

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