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8.12.07
Recupero aqui para o Quase em Português um post que escrevi em 2004 para o blogue Terra da Alegria, na qualidade de colunista convidado agnóstico naquele projecto católico. Já há algum tempo que senti que este post falta na lista aqui ao lado dos posts que considero - pela minha modesta bitola - os melhores que escrevi. Lembrei-me agora dele a propósito deste post do Timshel, e do nele citado do Palombella Rossa. Estamos de acordo, excepto naquele ponto de infelizmente não conseguir fazer ver ao meu amigo Timshel que não ter um Deus como referência não significa de forma alguma não ter uma moral para além da utilitária. Qualquer moral vai além do utilitarismo, porque sempre tem que responder a pergunta "útil para quê, para quem?". Mas vai aqui o texto, impregnado de profunda convicção de quem não acredita num Deus pessoal, nem num Juízo Final. «Cristo ensinou-nos (a parábola do Bom Samaritano), que o Amor ao próximo sobrenatural é a troca da compaixão e da gratidão, que acontece como um relâmpago entre dois seres, dos quais um é revestido daquilo que o constitui como ser humano e o outro é privado disso. Um dos dois é só um pouco de carne nua, sangrento e sem vida na berma da rua, um sem-nome, de quem ninguém nada sabe. Os que passam por aquilo, mal reparam nele e esquecem momentos depois, que nele tinham reparado de todo. Um único pára e dedica-lhe a sua atenção. O que se segue àquilo em actos, só é a reacção automática deste momento de atenção. Esta atenção é criativa. Porque o amor ao próximo se baseia na atenção criativa, ele parece-se com a genialidade. A atenção criativa consiste nisto, que se está mesmo atento àquilo que não existe. A humanidade não existe neste pedaço de carne sem vida na berma da estrada. O samaritano, que mesmo assim pára e olha, dirige mesmo assim a sua atenção àquela humanidade ausente, e os consequentes actos são prova de que se trata de atenção verdadeira. A Fé, diz Paulo, é a visão daquilo que não vemos. Neste momento da atenção a Fé está tão presente como o Amor. O Amor vê o invisível.» Este pequeno texto sobre a parábola do bom samaritano, que é duma carta que Simone Weil escreveu ao Padre J.M. Perrin, é de uma grande utilidade prática. Porque explica com clareza, que aquilo que separa a humanidade da inumanidade não é o sentimento da compaixão, embora que esse por si só, uma vez despertado, funciona de facto como motor das acções, que a humanidade requer de nós. (E que pode ser bastante ou não, na medida em que as circunstâncias, a nossa cobardia e o nosso egoísmo lhe podem colocar limites.) Todos nós, excepto uma minoria muito pequena, somos capazes dos bons sentimentos da generosidade, do amor e da compaixão, e de boas acções per eles induzidas. Adolf Eichmann, o organizador do holocausto, por exemplo, era. Quando foi capturado 1962 pelos serviços secretos de Israel e levado ao seu famoso processo, que resultou na sua condenação a morte e a consequente execução, a sua grande preocupação e angústia não se relacionaram com a sua vida. Estava preocupado com a hipótese que os judeus podiam vingar-se na sua família: nos seus filhos e netos! Não quero aqui especular sobre o espectro seguramente muito lato, os diferentes graus, em que pessoas diferentes são capaz desses sentimentos. O que importa é ver que esses por si só não protegem o mundo da inumanidade. Porque só terão consequências positivas se são despertados. E são-no de forma rara e selectiva. Simone Weil aqui justamente enaltece a atenção, como capacidade criativa de humanidade. Neste texto, no entanto, quero focar-me naquilo que condiciona o seu exercício. É verdade que esta atenção é uma grande virtude. Mais: A primeira e principal virtude. Ao contrário de outras virtudes, que aprendemos, com custo, na medida em que crescemos e ficamos adultos, o que acontece com esta é geralmente o contrário. Desaprendemo-na. Lembro-me – é verdade que já só vagamente – que como criança tinha dela uma boa dose. Uma desgraça que via, via a mesmo. Fazia-me pesado o coração e não me deixava descansar até ver que iria ser remediada. Ainda tinha aquela fé ingénua de quem vive uma infância feliz e num mundo aparentemente intacto: de que qualquer desgraça tinha remédio! Na medida em que cresci, perdi essa ingenuidade, e descobrindo um mundo repleto de desgraças sem remédio à vista fui me blindando emocionalmente. Sem realmente dar por isso, passei por um programa de dessensibilização. Culpa da sociedade egoísta e materialista? Sim. Culpa minha? Certamente. Mas também não posso fechar os olhos ao facto que ninguém, com a excepção de Jesus Cristo (e aqui, como descrente que sou, diria: nem ele!) é capaz de ter a atenção criativa da qual a Simone Weil fala, a mesmo toda a desgraça que passa perante os seus olhos. O que mereceria a nossa atenção é demais para qualquer um. Só se escolhesse viver num ambiente muito fechado, com poucos contactos para o mundo, como num convento por exemplo, sem TV, Internet, etc. e com pouca vida pública e social, seria talvez capaz de ter a atenção devida para o que se passa a minha frente. (Não o pior argumento a favor da vida monástica, por acaso.) Para todos nós, que não temos essas condições, resta ter uma atenção selectiva. Por ser praticamente inevitável, isso não deixa de significar que escolhemos cada vez, quando escolhemos não olhar, a inumanidade. Que optamos por não reconhecer no próximo o irmão, que optamos - para usar uma palavra que uso com pouco à-vontade e gosto - pelo pecado. Isto é fraqueza. Mas onde realmente entra o Mal no mundo, em grande escala, não é pela fraqueza. É no estabelecimento de critérios de selecção para os objectos da nossa atenção, e na sua institucionalização. A selecção deixa de ser percebido como pecado e não só o que ela exclui, ela própria desaparece da nossa consciência, na medida em que se estabelece como padrão socialmente aceite. A selecção - essa palavra tem, para quem se lembra de Auschwitz, uma conotação terrível, que aqui vem muito à propósito - divide entre quem reconhecemos como humano e o resto. Talvez eu não tenha força de envolver-me com todos que o merecem, mas é preciso – e possível - manter a consciência de que esse resto só o é por incapacidade minha. Que, realmente, o resto existe ou, para dizer o mesmo ao contrário: que, na verdade, não pode existir um resto. Mesmo não sendo capaz de lhe dirigir a atenção humana devida, não tenho o direito de ignorá-lo, de perdê-lo de vista por completo. Porque o outro, que desaparece, desaparece não só como candidato concreto à minha caridade. Como candidato à caridade até, por vezes, e depois a desgraça ter acontecido, pode reaparecer. (Lança-se uma campanha humanitária...) Mas ele também desaparece como factor com o qual contamos nas opções políticas, nas escolhas entre alternativas complexas. Ele, que não está presente, acaba de morrer da fome numa terra longínqua qualquer, flagelado por uma guerra civil alimentada com armas cuja venda ajuda à nossa economia, acaba esmagado debaixo das lagartas dos nossos tanques numa guerra "justa"; acaba afogado nas cheias num delta qualquer, em consequência de problemas ambientais que a nós convém ignorar. Se a palavra caridade para mim tantas vezes soa à hipocrisia, então é nestes casos: quando - emocionados - tentamos remediar um pouco a desgraça dos homens que antes tínhamos optado por não considerar nos nossos planos. |
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