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  • 24.10.07

    Júpiter e Juno
    (Annibale Carracci)
    23.10.07
    Um comentário tardio

    ao muito elogiado post de Desidério Murcho sobre o caso Watson.

    Partilho o seu repúdio pelas reacções apenas pavlovianas às palavras de Watson. Contudo acho que a sua argumentação enferma da omissão de uma questão fundamental para a apreciação do caso. Refiro-me à inevitável enformação ideológica de qualquer sistema conceptual com que descrevemos a realidade humana. A escolha das categorias em que dividimos esta realidade tem impacto sobre como ela se nos apresenta, e daí decorre a impossibilidade de ela não condicionar as opções que se nos oferecem pare nela agir.

    Se distingo, por exemplo, a população de um país em judeus e não judeus, acabo por realçar uma diferença entre muitas outras que podia focar nesta população. Se a minha opinião ter projecção na sociedade posso contribuir para que essa diferença ganhe uma relevância muito acima da que, a partida, objectivamente existe.
    Se esta distinção em teoria ainda se pode fazer, sem conter juízos de valor, e sem implicar a exigência de um tratamento diferente dos assim discriminados, na prática isto é impossível. Na prática esta distinção, que não se pode fazer sem enunciar características, ou seja, qualidades dos respectivos grupos ou raças, sempre conduz a juízos de valor.
    No caso de Watson estes juízos estão bem à vista. Até recomenda explicitamente agir conforme este seu juízo: Por serem menos inteligentes, os negros devem ser tratados de forma diferente, no que respeita a nossa política em relação a África. Não há aqui dúvidas sobre um racismo plenamente desenvolvido.

    Mas quis falar do erro de Desidério Murcho. Como se pudesse fazer uma perfeita distinção entre as duas coisas, o DM diz que os racistas retiram de “falsidades factuais” “monstruosidades morais”. Mas o inverso é igualmente marca do racismo: As monstruosidades morais conduzem a falsidades factuais.
    O DM acredita que observações factuais sobre raças possam ser moralmente neutras. Até parece que acredita que uma observação factual, por ser factual, é necessariamente neutra! Pensando melhor, não posso acreditar que ache isso: tão facil é me imaginar inúmeras afirmações factuais (falsas) sobre o Desidério, que ele consideraria, com razão, altamente ofensivas, logo moralmente nada neutras. Podia por exemplo dizer que todos os Desidérios são tendencialmente pedófilos. O que só não seria grave por ser tão obviamente absurdo. Mas se tivesse o poder que em tempos teve um Joseph Goebbels, essa afirmação passaria a ser mesmo grave.
    Não nego que possam existir características que permitem, do ponto de vista científico, classificar as pessoas em raças, que se possam fazer observações objectivas de diferenças entre elas. Mas um sistema de classificação, nas ciências humanas, nunca é neutro, porque está sempre inserido num contexto tão complexo que acabe necessariamente por ser uma escolha algo arbitrária, e assim influenciada pela situação e pelo interesse do observador, que ainda por cima faz parte do universo observado. E mesmo se, por hipótese impossível, existisse um observador absolutamente desinteressado, os seus resultados serão sempre argumentos de pessoas que não o são.

    A lição a retirar disto não é científica, mas política ou moral. Devo confrontar-me não só com as origens das minhas observações e conceitos do homem, mas também com as suas implicações e consequências.

    Como indiquei no início, estou ciente do desafio de, perante esta exigência, não ser cobarde e evitar linhas de raciocínio incómodas ou "perigosas". Tudo é permitido pensar. Só não devo esquecer-me de que isto não é inconsequente.*

    * alterado, ver comentários

    (Sobre o tema escrevi em tempos este post)
    22.10.07
    Há uma alternativa aos Estados Unidos de Europa

    Esta é a insignificância dos seus estados não unidos, num mundo globalizado em que paises populacionalmente e economicamente grandes (e não necessariamente pelo seu passado imperial) darão as cartas.

    Nenhum europeu no seu juízo pode querer isto. A única objecção séria contra um rápido avanço em direcção a uma Federação é a falta da legitimação e de controlo democrático das suas instituições. Como bem disse o João Pinto e Castro, a solução deste problema é o reforço das suas instituições democráticas, nomeadamente do seu parlamento. Como isto obviamente significa mais cedência de soberania dos estados membros à União, encontrará a resistência dos "patriotas" dos diversos estados membros. O seu atavismo é a principal ameaça ao futuro dos nossos filhos.

    Adenda:
    Li agora o post de Pacheco Pereira de hoje. Pode ter razão em muita coisa, do ponto de vista português. Talvez a minha despreocupação com a ideia de uma Europa federal decorre da gratidão – também atávica – pelo que Europa tem feito pela reabilitação de Alemanha no mundo, e da convicção de que Alemanha, enquanto estado federal, nunca seria uma região dos perdedores.
    Dá-se então que eu, tal como os meus filhos, vivo em Portugal. Mas no caso que os meus filhos um dia descobrirão que vivem numa região desavantajada da federação, vejo-os com a maior naturalidade fazer as malas e mudar-se para outra, seja ela Alemanha, Holanda, ou Espanha. E se eles mantêm uma relação afectiva com a terra da sua infância, o que acho provável, poderão fazer mais por ela do que se vivessem num Portugal não federado.
    Coisas complicadas

    Perguntou-me hoje o meu filho, de 8 anos, em evidente defesa do seu orgulho nacional:
    «Na escola dizem que foram os americanos que inventaram a bomba atómica. Mas não é verdade, pois não? Ela foi inventada por Einstein!»
    Tentei explicar-lhe
    1. que Einstein não desenvolveu a bomba, embora forneceu bases teóricas essenciais para a sua construção;
    2. que Einstein foi originalmente alemão, mas já era americano, na altura da construção da bomba, porque os alemães quiseram matá-lo, por ser judeu;
    3. que, de facto, houve muitos outros judeus de ascendência alemã que contribuíram para a construção da bomba, como o próprio Oppenheimer;
    4. que a construção da bomba atómica talvez não fosse uma coisa de que se devesse orgulhar.

    O meu filho de 18 anos acrescentou que todavia a primeira cisão de um átomo, o mecanismo físico base da bomba atómica, foi de facto realizada por um cientista alemão, Otto Hahn, na Alemanha nazi. Recebeu o Prémio Nobel para este feito em 1944. (Do homem que lançou o seu Prémio da Paz para se redimir do uso militar da sua invenção do dinamite.)

    E eu acrescentei que a sua parceira na investigação, Lise Meitner, não o recebeu, só por ser mulher. Como aconteceu a outras.

    Muita coisa ao pequeno almoço para um menino de oito anos.
    A Tristíssima Trindade



    O Dragão interroga-se, ao comparar a arquitectura da nova Igreja da Santíssima Trindade à Catedral de Chartres:
    «Religiosamente, não comento. É lá com eles, os católicos. Mas sempre medito: se a deterioração espiritual porventura acompanha a deterioração estética, então Deus lhes acuda.»

    Pois. Que a maior obra da Igreja Católica das últimas décadas parece um local adequado para a convenção anual dos industriais de sabonete, isso dá que pensar. - Só um deslize, um infortúnio? Uma escolha infeliz do júri do concurso?
    Não me parece.

    Alguém me mostre uma obra sacra dos nossos tempos, que se pode medir com Chartres!
    Há algumas obras boas, como Our Lady of the Angels, de Rafael Moneo, e se recuamos umas décadas, até obra-primas, como Ronchamps ou La Tourette. Mas Chartres? - Não há. E não é por acaso.

    Recordemo-nos de que significava a construção da catedral para os habitantes de uma cidade como Chartres, ou Colónia, ou Paris, nestes tempos. Durante gerações, investiram nela a maior parte da sua riqueza, o seu melhor esforço, o seu orgulho e a sua devoção profunda. Todos que participavam na obra, do bispo até ao mais insignificante trolha, deixavam nela o marco das suas mãos e da sua fé, literalmente em cada pedra.
    Não sei nada sobre a devoção dos autores da Igreja da Santíssima Trindade, dos seus construtores e operários, e não me compete, obviamente, duvidar dela em nenhum caso individual, mas acho seguro dizer que, no cômputo geral, separam-nos mundos neste domínio dos que construíram Chartres. Para não falar do próprio processo de construção, hoje incomparavelmente mais rápido, mais económico – a Santissima Trindade representa, comparado com uma catedral gótica, apenas uma ínfima parte dos recursos económicos dos fieis que para ela contribuíram - e mais anónimo.

    Se há ainda obras de grande valor na arquitectura sacra de hoje, elas são em regra pequenas, capelas, como as de Tadao Ando ou de Peter Zumthor, como Ronchamps, ou conventos, como La Tourette. Aqui não notamos a falta da representação do social, porque ela aqui não é necessária, não é esperada. Só uma catedral não pode falhar nisto, pois é exactamente isto, que ela tem que fazer: simbolizar a sociedade, como ela se integra na ordem divina.
    Porque isso hoje é impossível, por isso já não se constroem catedrais como dantes. Com outras palavras: o declínio da sua arquitectura reflecte o declínio da importância da Igreja na sociedade.

    Mas este é um problema da arquitectura sacra, não da arquitectura. Ainda se faz boa arquitectura. Só as grandes obras, as que encarnam aquilo em que acreditamos, o que aspiramos, o que somos, já não são, há muito, as catedrais.
    18.10.07
    X-rated

    Que bom estar de volta!

    Já me tinha esquecido como pode ter piada ler blogues. Muita!
    E se os Negros fossem mesmo mais estúpidos que os Brancos?

    «James Watson, Nobel da Medicina em 1962, um dos homens responsáveis pela descoberta da estrutura molecular do ADN, a dupla hélice da vida, precursor da genética, acredita que os negros são menos inteligentes que os brancos.»


    As reacções públicas de indignação, que seguíram de imediato às declarações do cientista, não me surpreendem nem as acho erradas. Mas sempre me deixam um sabor irritante a correcção política.

    No caso de Watson, que entre outro já defendeu incluir como justificação para um aborto, uma previsível futura homossexualidade do bebé, até é bastante óbvio que aqui não falou o cientista, mas o cidadão, que apresentou uma opinião pessoal. Ao contrário do que acontece com conclusões científicas, estamos todos, cidadãos, habilitados para as avaliar e eventualmente condenar.
    O Nobel não apresentou os resultados de um estudo, só falou enquanto figura pública, cujas declarações são tanto de levar a sério como as de um actor ou desportista sobre a matéria. Ou seja, não mais do que as dum taxista.

    O motivo da minha irritação latente, ao ouvir as condenações públicas, é este:
    E se Watson não só tivesse aproveitado a sua fama para divulgar as suas ideias pessoais, porventura reaccionárias e racistas? Se ele tivesse apresentado um estudo científico sério, elaborado com rigor e segundo as regras, que demonstrasse que os negros fossem, em média, mais estúpidos que os brancos? Merecia a mesma condenação política e moral? Ou não? Devia estar proibido chegar a tal conclusão? Se não legalmente, moralmente? Assim que, se lá chega sem querer, devia abster-se da publicação do estudo?
    Será que a investigação científica devia ser orientada de forma a evitar descobertas politicamente incorrectas? Ou haverá quem ache que até é impossível, se trabalhando cientificamente com rigor, chegar a conclusões politicamente incorrectas?
    17.10.07

    Im gleichen Rhythmus
    (Erich Godal)
    16.10.07
    O significado da religião para gente culta

    Francisco José Viegas escreveu um elogio àqueles ortodoxos religiosos, que se empenham na observância dos códigos e rituais da sua fé, sem nos maçarem com o seu proselitismo.

    Também a mim me enche com uma certa ternura imaginar homens e mulheres, de resto com os dois pés na terra e activos na vida, ao levarem, quando sozinhos com Deus ou na companhia dos seus irmãos na fé, os seus dogmas à letra e os seus rituais a sério, tal qual como a criança que, antes de adormecer, se encomenda ao Senhor. Há aqui uma ideia de pureza e de ingenuidade que – sem ironias – merece respeito.

    Mas o post de FJV não explica a mim, como ao Jansenista, o significado do fenómeno religioso para gente culta. Sempre inclui no conceito de "culto" uma disposição pela coerência intelectual, e essa parece-me faltar. E não só por causa da - pelo menos no caso do cristianismo - óbvia contradição entre a ideia da remissão ao privado e a própria doutrina que se quer observar.

    Há uma inocência que só se pode perder uma vez, e quem quer mantê-la, sabendo o que uma pessoa culta hoje sabe ou deve saber, só pode fazê-lo através de um exercício de esquizofrenia, da separação entre as verdades da fé e as da razão, nomeadamente da experiência quotidiana que nos mostra que a nossa religião, o nosso culto, é só um entre muitos que a humanidade desenvolveu.
    14.10.07
    Olá

    Não estive todo o tempo em Cabo Verde. Voltei entretanto e fui outra vez, voltei de novo...
    Não quero encerrar o blogue, mas faltou-me – e faltará? - tempo e também disponibilidade mental para escrever nele, e até de ler outros.
    Talvez faltar-me-ei menos se me livro da ideia de ter que falar sobre Cabo Verde. Talvez o farei um dia.
    Mas quero antes de mais agradecer e pedir compreensão a todos que não têm deixado de passar por aqui, de vez em quando.

    Agora algumas notas avulsas:

    O espanto desagradável que senti, quando peguei no avião de volta, pela primeira vez depois de umas semanas, num jornal português e fui lembrado, na primeira página, do caso Maddie.

    A relatividade da noção de pobreza: Sempre me irritou, na Alemanha, ouvir queixas de compatriotas que vivem bem melhor do que o português médio sobre a injustiça do seu baixo nível de vida. Agora voltando de Cabo Verde, tenho a mesma sensação ao ouvir as queixas dos portugueses.

    A lembrança, ao voltar a ler blogues, do a-vontade com que aqui se opina sobre assuntos de que não se sabe, achando-se competente sómente por orientação ideológica: Os prémios Nobel de Doris Lessing (que não li) e de Al Gore (sobre cuja razão ou não dos seus argumentos só posso conjecturar com base no que leio sobre o que uns e outros cientistas dizem).

    O nojo ao ver as caras dos políticos que agora voltam a ribalta na entourage de Luis Filipe Menezes.

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