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20.4.06
O Afonso Bivar tem razão. Não se deve discutír a questão do racismo como se tudo fosse da ordem das conotações que as palavras do racismo podem revestir. Concordo que não é possível usar uma linguagem sem reconhecer e reforçar, à partida, a ideologia que a moldou, através da inevitável submissão implícita à sua organização categórica. Ao abrir a boca, e todos começamos neste ponto, estamos a discursar numa linguagem ideolocicamente enformada, tal com o nosso pensamento. Ficamos mudos então, até vir a linguagem pura? Poderiamos esperar sentados, mas felizmente não é preciso. Não teria havido desenvolvimento civilizacional, se esse condicionamento fosse absoluto. A história das ideias, nomeadamente o iluminismo, provam que foi possível desenvolver um pensamento divergente, crítico e alternativo ao dominante que saiu dele mesmo que se julgou único e verdadeiro. Não empreendo nenhuma refutação da crítica que o Afonso Bivar fez, justa na medida em que ela responde mais a uma inabilidade minha de me exprimir do que numa divergência das ideias. Pois se ele se mostra incomodado com a utilização desinibida do vocabulário de genese racista, não advoga por isso a proibição do seu uso. Só recomenda cuidado. Só. Aqui estou de acordo, ma non troppo. Ter cuidado pode significar manter-se longe dos territórios perigosos, ou movimentar-se neles, com redobrada atenção. A tese central do meu post foi que temos excesso do cuidado do primeiro tipo, e falta do segundo. Já me virei repetidamente contra a moda de denunciar tudo e todos como “politicamente correcto”, como uma forma preguiçosa de denegrir posições adversárias sem se dar ao trabalho de desenvolver argumentos. Nestes casos, o “politicamente correcto” e a sua denúncia enfermam do mesmo mal, da limitação à luta pelo campo da linguagem, pela ocupação do discurso com os próprios conceitos. Não nego a legitimidade desta luta, e muito menos a sua utilidade no combate ideológico, mas o que me faz espécie em ambos os lados é a sua infertilidade, pois se contenta com a imposição da própria interpretação da realidade no lugar da do adversário. Falta-lhe vontade de entendimento, e isto não no sentido dum desejo beato de harmonia, mas no sentido de falta de respeito pela realidade. A luta pela imposição da ordem categórica da própria ideologia é uma péssima postura para quem quer aprender algo, é a desistência de aproveitar a dissência com o adversário como oportunidade tanto de compreender como de convencer. O “politicamente correcto” (PC), na medida em que ele incide sobre a linguagem como seu campo de acção principal, passa essencialmente pela proscrição e substituição de certo vocabulário, apostando, nem sempre mas muitas vezes com sucesso, em que se ultrapasse o mero eufemismo e que a nova palavra acabe por modificar também o próprio conceito. Todavia, o efeito mais imediato e elementar, e por vezes único, é a identificação social e política de quem use o vocabulário alternativo, que o marca como pertencente ao grupo dos “correctos”. Quem diz homossexual em vez de paneleiro mostra ao mundo que não é homofóbico. É verdade que isto faz parte da natureza do combate político, o combatente político não conta nem espera que todos que pretende levar para o seu lado acompanhem e digerem o seu raciocínio, basta-lhe para já ou para sempre, que eles se limitem, uma vez persuadidos de uma forma ou outra, a reproduzir as suas conclusões. Obviamente, a mim isto não me satisfaz. A adopção acéfala da linguagem PC, que tanto irrita os seus críticos, é porém não mais estúpida nem mais frequente do que a igualmente acéfala reprodução da ideologia dominante. Só, como esta última, ao contrário do que os críticos do PC nos querem fazer crer, ainda é o padrão omnipresente, dá muito menos nas vistas. Em concreto, é justo perguntar o que distingue, para além da avaliação por connotação, o paneleiro do homossexual. Embora que não nego, como disse, a força da organização categorial da linguagem, o seu efeito nocivo é mais difícil de demonstrar do que encontrar exemplos do falhanço de tentativas de combaté-lo através da eliminação de conceitos considerados politicamente incorrectas. Há tempos, no defunto Acidental (já não linkável), Henrique Raposo defendeu que não existia tal coisa de homossexual. Só existiam comportamentos homossexuais. A ideia parece clara, à primeira vista. Queria eliminar-se a catogoria e julgava-se assim eliminar também a discriminação dos que encaixam nela. À segunda vista, o disparate não é dificil demonstrar, no caso dos “homossexuais”, como dos “judeus”, dos “negros” etc. Posso discutir a bondade e utilidade do uso de eufemismos, na lógica “da ordem das conotações que as palavras do racismo podem revestir”, mas não está no meu poder eliminar os conceitos, sob pena de perda de realidade. Este reconhecimento não é idêntico com o reconhecimento da inocuidade destes conceitos. Podia, a titulo de hipotese (que não defendo, mas isto não interesse para o exemplo) estar, em teoria, a favor da extinção da categoria “homossexual”. Mas omitia então o facto de que este conceito continua a existir nas mentes dos outros, que não partilham a minha visão, como nas mentes dos próprios visados, que têm toda a legitimidade de o escolher como elemento identitário. Tenho a maior reserva perante tentativas de construir uma linguagem alternativa “correcta”. Em vez disto sou pela desmontagem e pela subversão da linguagem dominante. A própria ideia do “correcto” já enferma do germe dum positivismo ingénuo e perigoso. No fundo, o que quis fazer no post criticado, era exactamente o contrário do que “discutír a questão do racismo como se tudo fosse da ordem das conotações que as palavras do racismo podem revestir”. Defendi num exemplo concreto, um post do Dragão, de abstrair das conotações das palavras usadas e dar uma oportunidade ao texto de ser lido pela sua argumentação. Não significa isto excluir um juizo de valor sobre o texto que também tem em conta as conotações das palavras usadas, mas suspendê-lo. Também não significa ignorar o poder estrutural da linguagem ideológicamente marcada. Significa suspender processos de intenção e ter disponibilidade para interessar-se por um texto, para o que se pode ler nele, para além das contaminações ideológicas eventualmente identificadas. Se a argumentação em si não for absurda, ela tem direito à consideração e resposta, independente das intenções do autor que lhe possa suspeitar, por causa da sua linguagem. P.S.: Nunca é de mais ressalvar-se de malentendidos: Não digo que a linguagem é inócua, e que não faça parte da menságem. Faz e muito marcadamente. Os efeitos, no caso concreto, bem tristes, notavam se especialmente no tipo de aplauso que os posts do Dragoscópio receberam. Não sei por que razão o Dragão fechou as suas caixas de comentário. Esta poderia ter sido uma boa. |
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