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  • 23.10.07
    Um comentário tardio

    ao muito elogiado post de Desidério Murcho sobre o caso Watson.

    Partilho o seu repúdio pelas reacções apenas pavlovianas às palavras de Watson. Contudo acho que a sua argumentação enferma da omissão de uma questão fundamental para a apreciação do caso. Refiro-me à inevitável enformação ideológica de qualquer sistema conceptual com que descrevemos a realidade humana. A escolha das categorias em que dividimos esta realidade tem impacto sobre como ela se nos apresenta, e daí decorre a impossibilidade de ela não condicionar as opções que se nos oferecem pare nela agir.

    Se distingo, por exemplo, a população de um país em judeus e não judeus, acabo por realçar uma diferença entre muitas outras que podia focar nesta população. Se a minha opinião ter projecção na sociedade posso contribuir para que essa diferença ganhe uma relevância muito acima da que, a partida, objectivamente existe.
    Se esta distinção em teoria ainda se pode fazer, sem conter juízos de valor, e sem implicar a exigência de um tratamento diferente dos assim discriminados, na prática isto é impossível. Na prática esta distinção, que não se pode fazer sem enunciar características, ou seja, qualidades dos respectivos grupos ou raças, sempre conduz a juízos de valor.
    No caso de Watson estes juízos estão bem à vista. Até recomenda explicitamente agir conforme este seu juízo: Por serem menos inteligentes, os negros devem ser tratados de forma diferente, no que respeita a nossa política em relação a África. Não há aqui dúvidas sobre um racismo plenamente desenvolvido.

    Mas quis falar do erro de Desidério Murcho. Como se pudesse fazer uma perfeita distinção entre as duas coisas, o DM diz que os racistas retiram de “falsidades factuais” “monstruosidades morais”. Mas o inverso é igualmente marca do racismo: As monstruosidades morais conduzem a falsidades factuais.
    O DM acredita que observações factuais sobre raças possam ser moralmente neutras. Até parece que acredita que uma observação factual, por ser factual, é necessariamente neutra! Pensando melhor, não posso acreditar que ache isso: tão facil é me imaginar inúmeras afirmações factuais (falsas) sobre o Desidério, que ele consideraria, com razão, altamente ofensivas, logo moralmente nada neutras. Podia por exemplo dizer que todos os Desidérios são tendencialmente pedófilos. O que só não seria grave por ser tão obviamente absurdo. Mas se tivesse o poder que em tempos teve um Joseph Goebbels, essa afirmação passaria a ser mesmo grave.
    Não nego que possam existir características que permitem, do ponto de vista científico, classificar as pessoas em raças, que se possam fazer observações objectivas de diferenças entre elas. Mas um sistema de classificação, nas ciências humanas, nunca é neutro, porque está sempre inserido num contexto tão complexo que acabe necessariamente por ser uma escolha algo arbitrária, e assim influenciada pela situação e pelo interesse do observador, que ainda por cima faz parte do universo observado. E mesmo se, por hipótese impossível, existisse um observador absolutamente desinteressado, os seus resultados serão sempre argumentos de pessoas que não o são.

    A lição a retirar disto não é científica, mas política ou moral. Devo confrontar-me não só com as origens das minhas observações e conceitos do homem, mas também com as suas implicações e consequências.

    Como indiquei no início, estou ciente do desafio de, perante esta exigência, não ser cobarde e evitar linhas de raciocínio incómodas ou "perigosas". Tudo é permitido pensar. Só não devo esquecer-me de que isto não é inconsequente.*

    * alterado, ver comentários

    (Sobre o tema escrevi em tempos este post)

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