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  • 14.4.07
    Dois e um meio

    (Declaração de interesse: O autor da seguinte crítica é pai dum dos actores.)

    Peça de Teatro,
    Grupo Ditas Cálias
    Representação: Francisco Marcus, Maria Inês, Frederico Brückelmann - Argumento: Francisco Marcus – Encenação: Guilherme de Bernardo, Fábio Simões, Maria Inês, Mafalda Quintela – Imagem: Bruno Alves
    Apoios: Escola Secundária de Camões, A.E. Secundária de Camões


    Dois e um meio
    é uma odisseia de dois companheiros de ocasião através dum dia banal. Um homem de negócios, que está bem na vida - encarnado com precisão por Francisco Marcus - encontra, ou melhor: é encontrado por um inútil engraçado, que doravante se pendura nele. O potencial cómico desta personagem foi bem explorado por Frederico Brückelmann. Para completar o elenco, falta referir Maria Inês, que interpretou os vários papeis secudários. Embora com menos tempo em palco, teve ocasião de mostrar que como actriz é tão convincente como os protagonistas masculinos. Tanto a sopeira da tasca nojenta como a mulher sedutora foram uma delícia.

    Achei notável nesta peça escrita, realizada e representada por alunos dum liceu, a maturidade e o bom olho na escolha do registo. Tinha entrado no teatro vagamente apreensivo dum espectáculo ou sobrecarregado de pretenso significado, ou, pelo contrário, duma sucessão desconexa de graças de originalidade limitada. Nem uma nem outra coisa se verificou. Por um lado, o motivo da odisseia num só dia arrumou satisfatoriamente a questão da consistência narrativa, e a tensão entre as duas personagens principais desiguais forneceu oportunidades bastantes para a exploração da cómica situacional e do talento dos actores. Para falar de referências, e falo delas sem ironias, se bem com o devido desconto, admito que me ocorreram, além do Ulysses de Joyce, os pares desiguais Bucha e Estica e até - passe o exagero - Vladimir e Estragon. Pois a cómica do espectáculo, naturalmente devendo ao Slapstick, com destaque nos brilhantes passagens de reajuste do cenário entre as cenas, procurava genuinamente explorar o absurdo, e manteve-se longe do registo foleiro da corrente comédia televisiva.
    A produção estava em todos os aspectos muito competente, os cenários, limitando-se a apontamentos minimais dos requisitos necessários, bem escolhidos e eficazmente explorados pelos actores, e a iluminação e o som absolutamente profissional, seguros e perfeitamente sincronizados.

    Os duzentos espectadores prestaram standing ovation no fim do espectáculo, e era evidente que passaram uma hora bem divertida ao ver uma peça inteligente, despretensiosa e com um excelente ritmo.

    Próximos espectáculos:
    Terça-feira, 17.4. às 11.30h de manhã e
    Quinta-feira, 19.4. às 15.00h
    No Auditório Camões
    Entrada: 2 Euro
    Bilhetes a venda na Escola Secundária de Camões - Contacto: 969111243






    Como nasceu esta peça?

    Há uns meses Francisco Marcus, que escreveu o argumento, desafiou um grupo de colegas e amigos para realizá-la em conjunto. À partir daí, formaram um grupo, o “Ditas Cálias”, distribuiram segundo os interesses e aptidões de cada um os vários papeis entre eles: da organização, da realização à representação, e lançaram mãos à obra. Foram discretamente, sem grandes intromissões, apoiados pela sua escola, que se limitou a disponibilizar-lhes as suas instalações e de facilitar-lhes o seu uso.

    Isto leva-me a um momento de reconciliação com o ensino público em Portugal, tão vilipendiado, e com razão, a tantos respeitos. A visita de ontem ao Camões deu-me, em contraste a isto, alento. Não só as excelentes instalações, que bem sei, infelizmente estão longe de ser regra nas escolas portuguesas. Mas a plateia que vi, os jovens que se reuniam para ver o espectáculo dos seus colegas, vinham a um evento social, vinham para ver e para serem visto, constituiam isso mesmo: uma comunidade. E faziam boa figura. Longe das imagens de desgraça que as televisões nos mostram dos recreios, também longe das plateias dos concursos de talento da TV, que eu erradamente quase julgava já se terem substituído às tradicionais oportunidades, como esta aqui descrita, de jovens se experimetarem nas artes de espectáculo.
    O nível de tudo, do espectáculo e do público, era infinitamente superior ao que nos habituámos a ver na TV. Não quero menosprezar os candidatios destes concursos, não negar que neles se encontram jovens com aptidões prodigiosas, possívelmente algumas bem acima das que ontem vimos no Liceu Camões. Mas no essencial, não lhes chegarão aos calacanhares: na originalidade e na autenticidade. A não ser que vão à TV depois de já se terem metido em aventuras semelhantes à da aqui descrita. Pois na TV, são levadas a fazer proezas formatadas, são apertadamente monitorizados para reproduzir o padrão do sucesso já experimentado pelos responsáveis do programa. Não esqueçamos, lá não estão para se exprimirem, mas ao serviço das audiências do programa.
    Estes rapazes e raparigas do Camões puderam fazer o que queriam, aquilo em que acreditaram, livre de ouvir da boca de qualquer vedeta da televisão a sempre igual lenga lenga do “acreditar”, sem que interessa minimamente em que se acredita, ou melhor, em que aquilo em que “se acredita”, já há muito foi decidido pela produtora.

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