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  • 27.10.09
    J.M. Tavares e o manual dos maus costumes

    Gosto das crónicas de João Miguel Tavares no DN. Costumam ter graça - as vezes muita graça - e de ser inteligentes. Tanto mais admirou-me a crónica de hoje, em que comenta a tirada de Saramago sobre a Bíblia como "Manual dos maus costumes". Diz J.M. Tavares que Saramago, por ser ateu, não pode fazer tal afirmação. "Só quem acredita que a Bíblia tem alguma relação com a palavra de Deus está habilitado para sobre ela fazer considerações éticas. Eu preciso de ter fé para acreditar que naquele livro está não só um conjunto de palavras mas uma série de regras que eu imponho à minha vida."

    Ora isto é um disparate inexplicável de ouvir de uma pessoa com dois dedos de testa. Inexplicável, embora recorrente em pessoas que defendem a Bíblia contra os seus críticos, muitas destas curiosamente as mesmas que não se cansam de lamentar, noutras ocasiões, o alegado relativismo moral vigente na nossa sociedade moderna.

    J.M. Tavares admite que as regras constantes na Bíblia são vinculativas apenas para os seus crentes. Eu também. Presumo que dá o mesmo como válido para os "manuais" e doutrinas de outras religiões. Eu dou.
    Agora, se assim fosse, o que JMT está a postular é que todos que não partilham da respectiva crença, "não estão habilitados" e deviam abster-se de juizos de valor sobre as respectivas doutrinas. Ou seja, de ter opinião sobre a poligamia dos mormones, o papel da mulher na religião islâmica, a incineração das viuvas no hinduismo ou até do sacrifício humano, no caso hipotético de o culto dos Aztecas tivesse sobrevivido até aos nossos dias.

    Admito que o meu relativismo não vai tão longe. Tenho um palpite que o de João Miguel Tavares também não. Que, na realidade, so quer a imunidade a críticas para a religião cristã e talvez outros cultos actuais cuja prática não colide seriamente com o seu sistema de valores.

    À própria polémica da tirada de Saramago tenho pouco de original a acrescentar. Só um ignorante total, ou uma pessoa que não partilha o núcleo dos nossos valores ocidentais de hoje (valorização da vida humana, igualdade das mulheres, proibição da tortura e da pena de morte, proibição da escravatura, da discriminação racial, religiosa etc.) pode negar que a Bíblia é um manual até bastante completo dos maus costumes. E, de facto, muitos cristãos crentes, teólogos e outros, não negam isso. Dirão, o que é verdade e que Saramago omitiu - ou talvez antes não ele mas a comunicação social que se centrou neste "soundbyte" em detrimento do seu enquadramento -, que a Bíblia é muito mais do que um "manual dos maus costumes", pois também e um dos bons costumes. E é também e antes de mais, o livro mais influente de todos os tempos e que enformou a nossa cultura, a maneira como hoje encaramos as questões sociais e também morais. Felizmente evoluímos, pelo menos nas nossas sociedades ocidentais, já muito longe desta sociedade atávica que é representada e defendida no Velho e também - uma verdade que teólogos mais modernos gostam de esconder ou menorizar - no Novo Testamento. Mas temos nela a nossa origem.

    Muitos lamentaram o grande burburinho que as declarações de Saramago levantaram. Ao contrário da maioria destes não atiro as culpas a Saramago. Ele não só exerceu o seu direito, fez mesmo muito bem em promover o seu livro, usando frases sintéticas e com punchline. As reacções violentas e irracionais dão lhe razão: Em Portugal se está ainda muito longe de ser capaz de lidar com críticas a religião católica de forma racional e tolerante.
    Até colunistas inteligentes e habitualmente lúcidos não são excepção.

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