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  • 27.4.09
    Ísidor

    Para que não haja dúvidas, aqui sou muito melhor tratado do que o Ísidor, mas as reacções a minha presença intermitente aqui, os quais deveriam servir de exemplo a sua esposa, lembraram-me desta história de Max Frisch, do seu muito recomendável romance Stiller:

    «Ísidor era farmaceutico, um homem responsável portanto, que não ganhava mal com isso, pai de várias crianças e um homem nos seus melhores anos, e não é preciso realçar que Isidor era um marido fiel. Mesmo assim, não aturava que lhe perguntassem sempre onde tenha andado: Com isto podia passar-se, passar-se interiormente, para fora não deixava transparecer nada. [...]
    Num verão fizeram, como era moda na altura, uma viagem a Mallorca, e salvo as perguntas constantes dela, que o irritavam em surdina, estava tudo a correr na melhor das maneiras. Ísidor podia ser de uma ternura muito grande, quando tinha férias [...] O Mediterrâneo brilhava como num cartaz. Para a irritação surda da sua mulher, que já se encontrava no vapor a Mallorca, Isidor teve de comprar, no último momento, ainda um jornal. [...] Por mera teimosia, como disse, absorveu-se [no jornal], e quando a esposa realmente viajava para a Mallorca pitoresca, Ísidor encontrou-se, quando finalmente levantou os olhos do jornal, não ao lado da sua esposa mas num cargueiro bastante sujo, a abarrotar com homens de farda amarela, que também zarpava neste momento.
    [...] A fortaleza amarela, onde Ísidor foi educado para ser homem, ficava isolado no deserto, cujos por-do-sol aprendeu a apreciar. É verdade que de vez em quando pensava na sua esposa, quando não estava simplesmente cansado de mais, e possivelmente até lhe teria escrito, mas escrever não era permitido. [...] Esqueceu a sua farmácia, compreende-se, como outros os seus passados criminosos. Com o tempo Ísidor até perdeu as saudades, [...] e foi por simples cortesia quando - muitos anos depois - Ísidor atravessou numa bela manhã o portão do quintal, barbudo, magro como estava agora, o capacete colonial debaixo do braço, para que os vizinhos da sua moradia que há muito o contavam entre os mortos, não se assustassem com o seu traje deveras invulgar, obviamente tinha também cinto com pistola... Era uma manhã de domingo, dia de anos da sua esposa que, como já referi, amava, mesmo se não escreveu, estes anos todos, nem um postal. Por um instante, [...] a mão no portão que não estava oleado e chiava como sempre, hesitou. Cinco crianças, todas não sem parecença com ele, mas crescidas em sete anos, gritavam já ao longe: o papá! Não havia volta atrás. E Ísidor passou em frente como homem que chegou a ser em duros combates e com a esperança que a sua querida esposa, caso estivesse em casa, não lhe pedisse contas. Deambulava no relvado como se voltasse, qual habitualmente, da farmácia e não de África e de Indochina. A esposa estava sem palavras, sentada debaixo do chapeu do sol. [...] As crianças ficavam felizes por poder brincar com o capacete, o que naturalmente não passava sem brigas, e quando veio o café fresco, era o idílio perfeito, domingo de manhã, com tocar dos sinos e bolo de anos. O que queria Isidor mais? Sem prestar atenção à criada que ainda estava a pôr a mesa, Isidor pegou na sua esposa. "Ísidor!" disse ela, e estava incapaz de servir o café, assim que o visitante barbudo teve de fazer-lo ele próprio. "O quê?" disse ele com ternura, enquanto serviu café também a ela. "Isidor" disse ela e estava a beira das lágrimas. Ele abraçou-a. Ísidor!" perguntou ela, "onde estiveste o tempo todo?" O homem, por um momento estupefacto, pôs a chávena; simplesmente já não estava habituado a estar casado, e pôs-se a frente de uma roseira, as mãos nos bolsos. "Porquê nunca escreveste sequer um postal?" perguntou ela. Em resposta tirou o capacete às crianças espantadas, colocou-o, com um geste preciso e rotineiro, na própria cabeça, o que alegadamente lhes deixou uma memória indelével para toda a sua vida, papá com capacete e pistola, não só genuinos, mas até visivelmente algo gastos pelo uso, e quando a esposa disse: "Sabes, Ísidor, realmente, isto não devias ter feito!" bastava a Isidor do retorno feliz, puxou (com o gesto preciso da rotina, creio) a pistola do cinto e deu três tiros no meio do bolo mole, ainda não tocado e decorado com chantilly, o que provocou, como se pode imaginar, uma porcaria apreciável. "Então Ísidor!" gritou a esposa, porque o seu ropão estava todo salpicado de chantilly, pois, e se não tivesse havido as crianças inocentes como testemunhas, teria tomado toda esta visita que mal deve ter demorada mais de dez minutos, por uma alucianção. Cercada pelos seus cinco filhos, a parecer uma Niobe, apenas viu como o seu marido, o irresponsável, saiu com passos descontraídos do portão, na cabeça o impossível capacete colonial. [...]
    Uma resposta, onde o papá passou o resto da sua vida em terra, nunca chegou. Nem um postal. Mamã também não quis que as crianças perguntassem; ela também nunca pôde perguntar ao papá...»

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