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  • 4.10.08
    Tarrafal



    Um rectângulo plano, confinado pelo que de fora parece uma muralha do Portugal dos Pequeninos, com ameias e torres nos vértices. A muralha está em bom estado de conservação, o que acrescenta ao seu sabor a falso. Um sabor a Castelo de Guimarães, a Estado Novo, a sua pequenez, ao seu complexo. As ameias têm meramente funções decorativas, são, aliás, o único elemento decorativo. O muro é baixo, mas funciona por causa do fosso regular e cimentado que se encontra, ao contrário do que acontece nos castelos, no seu lado interior.

    Fiquei surpreendido que havia tão pouco para ver. Mas o quê esperava ver num campo penal? - Quatro barracas compridas, em alvenaria sólida, o seu interior dividido ao meio longitudinalmente, formando dormitórios estreitos de trinta metros de comprimento, mas apenas de quatro e tal de largura. Num lado a entrada, com uma porta gradada, muito sólida, com varões mais grossos do que alguma vez vi. No outro, no topo, atrás de um murete, as latrinas abertas, também elas em cimento. Das latrinas, em desuso desde 1974, já não há cheiro. Nem das pessoas que aqui dormiam: 30? 60? - Estou sozinho, sou o único visitante. Só o calor é tão insuportável como dantes.

    À frente de cada par de dormitórios há um edifício mais curto e mais compartimentado. Passa-se pelo mesmo tipo de portas gradadas, para entrar num curto corredor que acaba em beco sem saída. Num lado, muro, noutro, atrás de pesadas portas de madeira, três celas solitárias, dois por três metros, sem luz ou ventilação natural, excepto do que passa pela vigia, de tamanho de um palmo de mão. Ao contrário dos dormitórios, que estão, salvo as latrinas, completamente vazios de qualquer mobiliário fixo, as celas têm um banco em cimento. Aqui devem ter guardados os presos mais complicados; e imagino que era aqui onde os espancavam à noite, uma prática rotineira, como mais tarde leio na pequena exposição na entrada do campo.

    O que há mais? Um "Posto de Saúde", pavilhão pequeno e colocado de forma ridícula no centro do complexo, no meio da rua direita que se desenvolve a partir do único acesso do campo e que o divide ao meio. No posto de saúde lê-se que este foi muito tempo dirigido por um médico militar cujo nome não fixei, que não gostava de tratar os presos; preferia, como dizia, emitir os seus certidões de óbito. Acto para que teve frequentes oportunidades. Nenhum Mengele, ainda assim. Consta que um dos seus sucessores foi deposto por se ter insurgido, oficialmente, contra a forma desumana como se tratava os presos. Do seu nome devia recordar-me, mas não me recordo.

    Há ainda um edifício de cozinha, em estado avançado de degradação, e outro pequeno, cujo destino original não descortinei. Foi remodelado recentemente para não se percebe o quê: um café, um centro de divulgação? - Há vitrinas e prateleiras vazias, cadeiras Arne Jacobsen estranhamente deslocadas neste ambiente, e não vivalma, nem café.
    Há espaço. Bastante espaço. Os edifícios do campo não preenchem, nem de longe, o rectângulo delimitado pelo muro. Sobra terra, de momento coberta por uma erva irritante cujas sementes espinhosas se agarram aos meus pés. Nos restantes meses do ano, não há dúvida, só há pó. E sol.

    Tudo isto está visto em quinze minutos, que bastam para eu ficar tonto do calor que está fora e ainda mais dentro dos edifícios. Visto em quinze minutos por mim, por outros em quinze anos.

    Ao sair, e depois de ceder o meu Compal ao neto da velha na bilheteira, já no meu carro ar-condicionado, recordo as imagens dos dignatários do regime a visitarem Cabo Verde, e lembro-me de outros, hoje ainda vivos, e membros respeitáveis da nossa sociedade democrática. Apetece-me perguntar-lhes - a eles, não aos verdugos - que compactuaram por carreirismo, ou porque concordavam mesmo com este "mal necessário", embora não com os "excessos" de que porventura não sabiam muito e não quiseram saber mais: como é que convivem hoje com Tarrafal? Pensam nele às vezes?

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