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  • 3.8.08
    Etiam si omnes – ego non!

    O JPT faz um elogio duplo ao filme "A queda" e ao actor Bruno Ganz, que representa a sua personagem principal. Concordo, mas gostaria ainda estender o elogio ao autor do livro em que o filme se baseia, Joachim Fest, historiador e jornalista alemão falecido em 2006.

    Até esta data, 2006, não tinha este homem em grande conta, sem saber muito dele e da sua obra, o que achava dispensável, uma vez que se tratou de um jornalista famoso, mas também de reputação suspeita entre qualquer pessoa de esquerda, pois autor de livros sobre Hitler e Albert Speer, assumidamente anti-marxista e destacado detractor da superioridade moral da esquerda alemã pós-68. O prego final na caixa de preconceito em que arrumei o homem, foi o "Historikerstreit", o facto de que ele deu espaço no seu jornal FAZ ao historiador Ernst Nolte, para publicar as suas teses de que os "assassinatos racistas" perpetrados pelos nazis foram uma "resposta defensiva aos assassinatos classistas" na URSS de Estaline. Mesmo se Fest não alinhava completamente com a argumentação de Nolte, o simples facto de, em 1986, dar espaço a uma tal opinião num jornal era para mim e muita boa gente da esquerda prova bastante de uma de duas coisas: Ou era um idiota útil da propaganda negacionista, ou participava activamente, embora sem o assumir, nesta tentativa de relativizar, e como adivinhávamos, posteriormente reabilitar o nazismo.
    Nesta altura não tinha lido nada de Fest, salvo um ou outro artigo de jornal, e neste episódio firmei a minha opinião de ter feito bem assim: este homem não merecia ser lido, apesar do grande êxito crítico que teve a sua biografia "Hitler" de 1973, até no SPIEGEL de Augstein.

    Assim demorou até 2006 que comecei a ler um livro de Fest, e foram três razões que contribuíram para isso. A primeira foi o filme "A Queda", que me impressionou e era baseado num livro seu. A segunda era o seu falecimento no Outono deste ano que deu lugar a vários obituários e testemunhos mais diferenciados. Estes abalaram a imagem que tinha deste homem como reaccionário, ou seja de pessoa intelectualmente inflexível e moralmente censurável. A terceira razão foram os elogios unânimes a sua autobiografia “Ich nicht” ("Eu não"), publicada poucas semanas após a sua morte.

    Li "Ich nicht" e fiquei avassalado. Descobri um escritor que usava da língua alemã com uma elegância despretensiosa, simultaneamente simples e precisa, como mais ninguém. Escrevia como eu sempre quis escrever e nunca escreverei. Li uma autobiografia cuja personagem principal não era o autor, mas o seu pai. A história de uma família burguesa no tempo nazi que teve todas as razões e oportunidades para se acomodar com a nova situação, mas não o fez. O pai de Fest era um director de um liceu num bom bairro berlinense. Com filhos e mulher de boas famílias, currículo de conservador moderado, a sua carreira na função pública até agora bem sucedida tinha todas as perspectivas para prosseguir. Só haveria um preço que muitos não julgavam muito alto. Alinhar ou pelo menos fazer de conta que alinhasse. Em concreto, o director do liceu tinha de entrar no Partido. Não o fez. Com a consequência do desemprego, da posterior expulsão dos seus filhos do liceu, e de outras chicanas. Sendo da classe média remediada, e com contactos no mundo da Igreja Católica, aguentaram isso certamente melhor do que teriam aguentado outros, menos afortunados. Mas custou, mesmo assim.
    Outra coisa que a família não fez foi deixar cair os seus amigos judeus. Uma das cenas mais comoventes do livro é a descrição como o filho Joachim, com 14 anos, é obrigado de visitar regularmente um amigo judeu da família, cuja mulher já se suicidara no desespero da crescente perseguição e total isolação, para levar ao homem de letras que já não se atrevia sair da casa alimentos e antes de mais, ler com ele as amadas grandes obras da literatura alemã.
    Seria exagero chamar a resistência desta família luta política, ela era sem grandes conspirações e sem grandes feitos na clandestinidade, mesmo se essa, a clandestinidade, fazia parte da sua vida como de todos que não alinharam a 100%. (Nestes tempos, bastava ouvir a BBC para merecer a pena de morte.) A resistência da família Fest não emanava de um antagonismo "genético", como a comunista ou a dos judeus; também não foi ingénua e idealista até ao auto-sacrifício, como a dos irmãos Scholl; e também não sofreu da ambiguidade inevitável como a daqueles que, já comprometidos com o regime, arriscavam tudo, mas em vão e tarde demais no atentado do 20 de Junho de 1944.
    A resistência dos Fest não foi heróica no sentido como estas foram, foi apenas cívica, limitou-se a insistir obstinadamente na decência quotidiana. Aquela decência simples de que todos sabemos que é, e em tempos de paz e liberdade todos exercemos mais ou menos bem, mas, nesta altura, tão poucos foram capazes de manter. A força do apelo deste livro deriva disto: que os seus protagonistas são - quase - pessoas como nós, e agem como exigiríamos a nós agir numa situação semelhante. O livro mostra como mesmo isto, em regimes desumanos, é difícil. Mas mostra que é possível.
    É difícil negar que o que os Fest fizeram não fosse exigível a qualquer um que não abdique da sua auto-estima. Só isso leva-nos a concluir que os 99% dos seus contemporâneos, que lhes ficaram atrás, perderam o direito de descansadamente olhar ao espelho. E leva-nos de seguida à questão se nós podemos estar seguros de contar-nos, caso a situação o exigisse, entre o restantes 1%.
    Note-se que até a modesta resistência cívica dos Fest sempre lhes custou a vida de um filho, que morreu de pneumonia não tratada num batalhão penal.

    Voltando do livro ao autor Joachim Fest e ao leitor Lutz Brückelmann.
    "Ich nicht" abriu-me os olhos para a injustiça que tinha feito ao autor, ao arrumá-lo no outro lado. Eu que se orgulhava de não ter lado, não me tinha apercebido que na apreciação do outro fiquei refém da perspectiva do lado que julgava não ter. Depois de ter lido a magnífica biografia de Hitler e mais sobre a sua vida e actividade, admito que melhor do que eu Fest seguiu ao mote do seu pai, que logo me agradou e deu o título ao livro. "Eu não" deriva de Mat 26/33 e reza "Etiam si omnes – ego non!"
    "E mesmo se todos alinhassem, eu não!"


    (Infelizmente não existe - ainda? - tradução inglesa ou portuguesa do "Ich nicht".)

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