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22.7.08
Quando, há 15 anos, pela primeira vez cá fui a uma consulta do médico de família e lhe solicitei explicar as medidas e prescrições que me tinha dedicado, ele perguntou-me, meio ofendido, meio espantado, se porventura tivesse estudado medicina. Tendo em conta que eu não era propriamente um trolha, conclui que a postura do médico no meu caso não era fruto de preconceito de classe, mas corporativo. O homem estava convencido que não tinha de prestar contas a mais ninguém a não ser aos seus pares e superiores. Semelhante sensação causou-me em tempos ouvir um colega referir-se a um juiz que acabou de conhecer. Baixava a voz, por tanta reverência para com o ausente. Trabalho no ramo da construção civil, e também aqui há personagens com estatuto e provas dadas, mas nunca encontrei ninguém que achasse, por isso, que estes não tinham de prestar para além dos seus serviços, também as contas a quem as recebia. No meu ramo presume-se a falibilidade de qualquer envolvido, ao contrário do que parece, ser o caso na medicina e na justiça. Bom, na verdade, presumimos sim, até o trolha presume. Pois mesmo que mostre, de dia, a reverência que julga devida, não se inibe, quando entre os seus, de resmungar contra a arrogância, a incompetência ou até a corrupção dos “lá de cima”. Entretanto, graças aos casos Casa Pia e Maddie, e não só, o prestígio da justiça anda pelas ruas de amargura. O discurso de reverência passou a ser cada vez mais raro e cada vez mais debitado como um daqueles dogmas religiosos nos quais já não se acredita mas que se julga dever continuar a afirmar, a bem de não se sabe bem o que, ou melhor, se sabe: da convenção e da preservação da ordem natural das coisas. Por outro lado, também graças à comunicação social, que gosta tanto de auscultar a voz do povo indignado às portas dos tribunais, o discurso da desconfiança indiscriminada ganha cada vez mais crédito, passa a ser “verdade que toda a gente sabe” mas não pode alterar. Ambos os discursos, o pai nosso da dignidade da justiça e o bota abaixo contra o “sistema”, são faces do mesmo problema. Enquanto no caso da medicina ainda há esperança que o mercado se encarregue ensinar aos médicos a sua responsabilidade perante aqueles a quem prestam o seu serviço (e quem pode permitir-se o luxo de recorrer ao privado já pode constatar este efeito), na justiça obviamente nunca veremos resolvido o problema por esta via. À justiça falta ainda adaptar-se à sociedade que se desenvolveu depois do 25 de Abril, com o consequente e natural crescente número de pessoas que podem fazer uso da sua cidadania e requerer os seus serviços. Tem de adaptar-se em termos materiais e organizacionais, como em termos de mentalidade, cuja necessária alteração se reflectirá certamente também na alteração de estruturas e procedimentos. Para além de meios, de formação, faltam aqui transparência e responsabilização, para não mencionar a imprescindível independência. Para como não fazer as coisas, o caso Maddie, agora arquivado, impõe-se como um case study. Quem e com que justificação aplicou os meios descomunais neste caso, em detrimento de outros? Como funcionou ou não funcionou a coordenação deste caso, quais erros foram cometidos, e não por último, quais foram as influências exteriores e levaram a quais consequências? Todas essas perguntas merecem ser respondidas, sim, publicamente, mas no âmbito de uma investigação competente e séria. A justiça é uma matéria diferente das outras, mas é uma matéria que diz respeito a todos nós, que deve por isso ser escrutinada não só nas corporações, não só nos corredores do poder, não só nos tablóides, mas por nós, interessados mas descomprometidos: a sociedade civil. |
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