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  • 14.2.08
    Filosoficamente irrepreensível?

    João, não me recordo que alguém dos opositores do Papa no caso La Sapienza invocou uma alegada falta de habilitação intelectual. Foram as suas frases sobre o caso Galilei que os levaram a exigir que se tratasse Bento XVI na universidade como persona non grata. Em bom rigor, nem isso exigiram. Achavam, como eu, por exemplo, o convite para abrir o ano oficial da universidade uma escolha infeliz da direcção, contestável, mas legítima. Não falarei por todos, mas a mim não me faria impressão nenhuma de ver o Papa, ou outro quem defende posições semelhantes, de nela fazer palestras ou também de leccionar.
    Do meu espanto sobre como este caso foi transformado, na opinião pública, num caso de perseguição por delito de opinião, já aqui dei conta.

    Obrigado pela disponibilização do texto de Ratzinger que originou a contestação. Conheci até então só os parágrafos que referem directamente ao caso de Galilei. Lendo-o na íntegra, tenho que corrigir um juízo que fiz na altura. Supus que ele foi essencialmente escrito com o fim de reabilitar a Igreja nesta caso. Vejo que não foi, que tem maior envergadura. Pese embora que o alinhavamento dos três testemunhos de Bloch, Feyerabend e Weizsäcker é bastante superficial, pouco sólido intelectualmente e metodologicamente apenas aceitável como jornalismo e não como filosofia. Mas como a forma do texto é de ensaio, será permissível fazer como fez e limitar-se a apresentar as ideias dos filósofos apenas citando uma frase sintética que agudiza, claramente com fins retóricos, o ponto que pretendem fazer. A elipse é um dispositivo legítimo, mas tem límites.

    Ratzinger partilha com os autores citados e com outros protagonistas da Escola de Frankfurt (e já agora, comigo), a crítica ao positivismo científico. Mas há diferenças importantes. Quando para Horkheimer e Adorno o fracasso do projecto do iluminismo é uma catástrofe de dimensão imesurável, para o Papa é uma boa notícia. Pois ao contrário destes, e também ao contrário de outros mais optimistas como Habermas, está convencido que o paradigma que ele historicamente substituiu, pode voltar a ser valido (ou melhor, para ele, nunca deixou de ser válido).

    Não devemos esquecer que toda a filosofia de Ratzinger sucede e não, como seria correcto para um filósofo, antecede as convicções e posições que defende. É uma filosofia comprometida com a instituição que representou e representa, ora como Prefeito da Congregação da Doutrina da Fé ou hoje como Papa. Ou seja, quando nos dá a ideia que nele fala um filósofo de gabarito sobre e com os seus pares, isto pode ser verdade no que respeita à inteligência e erudição, mas nunca no que respeita à liberdade e abertura do seu pensamento. Mesmo filosofando, fala sempre o alto funcionário da instituição. De uma instituição marcada por um sistema antigo, rígido e autoritário, que limita antecipadamente, senão o que se dever observar e supor, certamente o que se deve e pode concluir.
    Sempre que oiço a palavra "liberdade" da boca do Papa, recordo me disto. E admito que tenho as maiores dificuldades em presumir a honestidade intelectual de alguém que me fala, ainda por cima como filósofo, a partir de uma tal posição.

    Voltando ao seu texto: Concordo com a sua crítica à razão instrumental, à prática ingénua e desastrosa que se instalou, nomeadamente desde o século XIX, de lhe reconhecer autoridade em, de facto, todas as esferas da vida. Acho como ele inaceitável a compartimentação da vida, em que todos os assuntos duros da vida, a política, a economia, a indústria, são cedidos ao seu domínio, reservando-se um cantinho inconsequente para os outros assuntos, rotulados como sentimentais, como a moral e a religião.
    Concordo, obviamente, que o uso da razão instrumental possibilitou algumas das maiores tragédias humanas da história, de Verdun sobre Auschwitz à Hiroshima. (Não acho contudo que ela as causou!) Concordo com ele que a razão instrumental não pode ser deixada sem rédeas.

    Não concordo com ele que essas rédeas devem ser as da Igreja Católica, e não reconheço nenhuma razão, nem histórica nem lógica, porque ela pudesse ou devesse ser elegível para este papel. Muito pelo contrário!

    Segue-se à parte da referida análise uma outra parte que já não pode ser sequer má filosofia: deve ser isso teologia. Há aqui uma argumentação sobre uma suposta irracionalidade do materialismo e uma suposta racionalidade da fé que é completamente incompatível com o gabarito filosófico que se lhe costuma reconhecer.
    Como se pode argumentar que se segue do facto de que o cristianismo postula um ser consciente e dotado de razão (Deus) como origem do mundo, que a religião em si seja também racional?
    Como se pode deduzir, como faz, do facto de que o materialismo prescinde da suposição de um tal criador consciente, que ela seja uma filosofia irracional?
    Como se não fosse racional concluir da observação da natureza pela existência de uma ordem que lhe seja intrínseca? E mais, continuando racional, dispensar de especulações sobre a eventual origem desta ordem que logicamente permanece completamente infértil e só pode levar a mais especulações cada vez mais elaboradas mas racionalmente tão infundadas como a primeira?

    Em resumo, no texto citado fala um alto funcionário de uma instituição que se julga detentora da verdade. Fala um conhecedor da filosofia contemporânea, aproveitando-se dela na medida em que ela lhe é útil na promoção da verdade e do interesse da sua instituição. Mas não fala como um intelectual inter pares falaria. Não põe as suas ideias à discussão, como aliás se viu bem no episódio que gerou a polémica, não procura com os "colegas" uma verdade que ainda não é estabelecida.

    Enfim, é um líder religioso, um político.

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