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  • 1.12.07
    Verdade e religião

    No De Rerum Natura está a decorrer, desde há dias, um debate interessante sobre a sustentabilidade racional da religião. A argumentação não é nova, mas é conduzida com muita erudição, como é habitual neste blogue.
    Tal como o Desidério Murcho acho irrefutável que a fé em Deus não tem sustento racional. Mas faz-me sorrir a candura com que acha inquestionável que a aproximação à verdade deve e pode ser exclusivamente por via racional, através do método científico. A verdade que procura a religião, não é a verdade científica. Acho aliás errado chamar aquilo que a ciência procura e pode estabelecer, verdade. Como o Desidério bem sabe, a ciência leva-nos, quando for bem sucedida, a modelos da realidade que nos permitem fazer previsões do que acontece em determinadas circunstâncias e de as aproveitar para adaptar o nosso comportamento. E para desenvolver aparelhos que nos facilitam a vida. Deste modo, a ciência é o instrumento sem rival para nos orientarmos no mundo. Mas não passa de um instrumento para só este fim. Não é útil para nos levar a verdade, não o é, em todo o caso, mais do que a religião. Aliás, quem acha que a ciência nos pode levar a verdade está a usá-la como religião.

    Para usar um exemplo de uma área que possa ser mais compreensível para quem não é religioso:
    O cientista que quer explicar as questões que a religião coloca parece-me como alguém que acha que pode explicar o mistério da música de Bach com o instrumentário sofisticado de análise acústica ou da neurologia. Um dia será possível, não duvido, explicar como as ondas de som moduladas que me chegam ao ouvido são transformadas em impulsos electromagnéticos no meu cérebro e induzem, por sua vez, processos químicos que no fim fazem que me sobem, cada vez quando oiço o "Erbarme Dich", as lágrimas aos olhos.
    Mas essa explicação arruma a questão? Obviamente não.

    A religião responde a uma inquietação metafísica e existencial, que uma explicação do "como" não consegue apazigar.

    Dito isto, convém reconhecer a perigosa e nociva influência das religiões, que de facto reclamam muitas vezes autoridade em domínios da ciência.
    Também não reconheço autoridade moral ou social às religiões, excepto em determinados casos, mas por razões somente instrumentais e não essenciais, como explicarei mais em baixo. Uma coisa é a legitimidade de uma resposta irracional ou para-racional a questões que escapam à razão, resposta individual ou colectiva. Outra é deduzir desta resposta quaisquer regras que extravazam o grupo dos crentes. É absurdo procurar introduzir resultados da religião na ciência, como fazem os criacionistas.
    Mais comum e mais grave contudo é quando querem impor-nos as suas regras sociais. Defendo, e felizmente muitos crentes sensatos também defendem a invalidade de argumentos religiosos no debate da moral pública. (Veja-se o exemplo do aborto.) Pois além da razão, a única alternativa de chegar a um "acordo" entre pessoas que não partilham a mesma opinião é a violência. Se queremos encontrar-nos, pacificamente, atravessando os limites das nossas crenças religiosas, temos de fazê-lo inevitavelmente no plano da razão. O irracionalismo, individual e colectivo, é aceitável se se restringe ao domínio e o grupo dos seus adeptos, mas deve ser combatido sem hesitação quando manifesta, o que aconteceu e acontece todos os dias, a pretensão de condicionar a vida dos não crentes ou crentes de outras confissões.

    Um olhar para a história e outro à nossa volta ensina-nos algumas coisas importantes a esse respeito. Uma é que a religião historicamente foi indissociável da estrutura social, que o seu código coincidia com o código moral e legal da sociedade e que, antes do surgimento de instituições seculares, só a sua ordem permitiu que houvesse ordem de todo. Vendo isto, compreende-se, se chegamos a negar-lhe hoje, e bem, a autoridade de condicionar a ordem social, que estamos a retirar-lhe um domínio milenar, que preencheu durante muito tempo; e por falta de alternativa, com legitimidade. E é ainda hoje aconselhável, antes de tentar de retirar-lhe o resto que lhe ainda sobra, pensar naquilo que existe ou não que pode preencher o espaço que ela cede.
    Sê-lo-á em graus diferentes na Alemanha, no Portugal ou no Iraque, mas pode ser preciso reconhecer a necessidade política de lhe deixar espaço e influência social, mesmo se não temos outra razão do que a da falta de alternativa viável.
    Que a autoridade das religiões de definir o que é verdadeiro e correcto é racionalmente insustentável, para isso basta olhar a nossa volta e admitir a simultaneidade de diversas religiões concorrentes e dogmas incompatíveis que não podem estar todas certas, embora cada uma delas se auto-justifica pela experiência da fê dos seus crentes, pelo seu devir histórico e a sua legitimação pelas respectivas escrituras sagradas. A sua arbitrariedade é evidente para qualquer um quem os vê por fora, o que hoje, só não faz quem não quer.

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