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  • 10.5.07
    Safety second

    A minha mãe, quando tinha a idade do meu filho mais novo hoje (7), andou dia sim dia não dez quilómetros com a sua irmã um ano mais velha, para buscar dois litros de leite à quinta. Os pais instruiram-nas que, quando vier um Tiefflieger, isto é um avião sniper dos ingleses, que costumavam fazer caça aos civis em 1944, não se preocuparem com o leite derramado mas procurarem imediatamente abrigo das rajadas de metralhadora nas valas a beira do caminho.
    Um amigo do meu pai ficou cego aos doze anos porque teve azar ao brincar com munições que encontravam em todo o lado. Teve mais azar que o meu pai. Isto foi em 1947, dois anos depois da guerra.

    Eu ainda andava no primeiro ano que brincava sozinho, isto é, sem ser acompanhado por adultos, com os outros miúdos na rua. Escalámos numa pedreira abandonada, faziamos batalhas com fisgas. De tábuas e velhos barris fizemos uma jangada com que atravessávamos o charco. Ninguém de nós sabia nadar.
    Desde a segunda semana fazia o caminho para a escola primária sozinho. Eram três quarteirões, entre prédios de habitação e fábricas, em Wuppertal.
    Depois de mudarmos para o campo, tinha eu nove anos, o meu raio de acção aumentou. Como o liceu era à doze quilómetros, visitava os meus amigos nesta vila e mais além, de bicicleta ou de autocarro, sozinho, e sem telemóvel. No inverno, voltava no escuro.
    Aos dez anos o meu pai pôs-me no comboio, em Colónia, e a minha tia esperava-me no Gare du Nord, em Paris. Medidas de segurança: Pediu ao pica-bilhetes de ter um olho em mim.
    Aos treze meteram-me a mim e um colega da turma numa camioneta para Oostende, onde chegava às quatro de manhã. Lá, tínhamos de desenrascar-nos e embarcar no ferry para Dover, e em Dover, depois de passar a alfândega, meter-nos no comboio para a Victória Station, onde o tio do meu amigo nos esperava. Sozinhos, e a tomar conta da nossa bagagem também.
    Aos quinze fiz a primeira viagem de autostop, para Munique, e no ano seguinte atravessei a França, o vale do Loire, até ao Bretagne.

    Hoje, levo o meu filho de sete anos todos os dias para a escola, e o irmão de 14 todos os dias vai buscá-lo. Se vai para algum lado, vai levado por nós. E custa-me, mas esforço-me, já não fazer o mesmo com os meus dois filhos grandes, de 14 e 17 anos.

    Porquê conto isso tudo? Porque alguém criticou os pais da Madeleine por tê-la deixado sozinha em casa. Quantas vezes alguém fez algo semelhante? Eu já fiz. Quantas vezes aconteceu uma tragédia? Claro que para os pais da Madeleine já não há consolação. Mas recuso-me de retirar daí uma lição generalizada: A de que não se pode deixar os filhos fora dos olhos nem um minuto...
    Vivemos obcecados com a segurança. E com cada risco que eliminamos através de uma medida que reduz a liberdade e a autonomia - a nossa e a dos nossos filhos - ainda mais, encontramos um novo perigo que não nos deixa descansar até também termos tratado dele.
    Assim, - admito - no computo geral, poupamos algumas vidas, evitamos algumas tragédias. Estatisticamente, os meus filhos estarão mais seguros. Mas pelo que preço?
    Pelo de saberem menos da vida e de serem menos capazes de lidar com situações de risco, menos capazes de dependerem deles próprios e de reagir bem em situações não previamente preconizadas.
    Se pudesse dizê-lo, sem arriscar que um Villas-Boas viesse por em causa a minha aptidão como encarregado de educação, então diria: Na próxima vez no Algarve, quando o meu filho pequeno quer ir comprar o seu gelado sozinho, deixá-lo-ei ir, satisfeito e orgulhoso, e com fé em Deus.

    Nota: O sistema dos comentários anda, pelos vistos, com problemas. Já vi aqui mais comentários da Helena,da Susana e da Gabriela, que valem a pena ler. Aparentemente há um truque, que os volta a tornar visível para o leitor. Tem que deixar ele próprio um comentário, nem que seja uma letra. Mistérios do nosso mundo novo...

    Actualização: Parece que o problema está resolvido.

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