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  • 2.1.07
    Crime e castigo

    Por absurdo a frase soa nos ouvidos de nós europeus, crentes nos direitos humanos por um lado, e nos nossos olhos e nosso juizo por outro, não acho acertado chamar hipocrisia que o Presidente George Bush chama o enforcamento de Saddam uma etapa importante («milestone») no caminho para a democracia iraquiana. Estou seguro que devo temer que, a semelhança de outros casos, também aqui ele é sincero e a frase nos esclarece sobre a ideia que o presidente e, não nos iludamos, muitos dos seu compatriotas têm da democracia. Contudo hipocrisia, e hipocrisia que se quer entendida como tal, é a afirmação do governo americano que o julgamento e a execução de Saddam foram um processo exclusivamente iraquiano, ao qual os americanos se limitaram prestar generosos serviços de segurança e de logística. É sabido que estes serviços foram porventura bastante deficientes, como os sobressaltos do processo e as mortes violentos de vários intervenientes testemunharam, mas nunca houve, nem por um momento, dúvida sobre o desfecho previsto.
    No que respeita aos iraquianos, quem podia admirar-se? Confesso que eu, declarado opositor da pena capital em todos os casos, logo também neste, vejo bem como perverso deve parecer a um membro deste país, desta cultura, que ali viveu e sofreu, e ainda vive e sofre, a ideia que uma nova época com novos valores, que incluem o incondicional respeito pela vida humana, devia começar com o exemplo da indulgência logo para este homem.
    Assim percebo o porquê do enforcamento pelo lado iraquiano. Nem se colocam, no caso, dúvidas da ordem da razão de estado. Para esta, a vida ou a morte do ditador já não faz diferença nenhuma. Nem acredito que o seu enforcamento reforçará a guerra civil, que não necessita de incentivos, nem acho que poupá-lo teria constituído o perigo dum eventual regresso, a semelhança de outros casos de ditadores depostos.
    Saddam foi enforcado por crimes que merecem, no código penal e moral da cultura a que pertenceu, este castigo, e morreu satisfazendo o sentimento de justiça da grande maioria dos seus compatriotas iraquianos. Mas não só o deles. Este não foi só um enforcamento iraquiano, mas também um americano.
    Percebe-se que todas as afirmações do presidente americano e dos responsáveis da sua administração, que a execução foi da exclusiva responsabilidade iraquiana, são feitas com um piscar de olho, que o mais distraído compatriota vê e entende. O presidente diz isso, mas percebe-se que não fala a sério. Estas coisas, na política, as vezes dizem-se, porque tem de ser. Mas os americanos sabem que o seu presidente sabe que eles sabem que o chão cedeu debaixo dos pés do ditador iraquiano para pagar pelo 9/11. E acham-no bem.
    Que ele caiu no lugar dum outro, a quem não conseguiram deitar mão ainda, é um pormenor que no plano mítico, a que este crime e o seu castigo pertencem, não tem importância nenhuma.

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