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  • 8.12.06
    O momento do sopro da anima

    No Hole Horror, JCD faz a sua declaração de voto na questão do referendo do aborto. Não é o sentido do voto, nem o expresso “não”, nem seria o contrário, que confere especial mérito ao post. Este advém de que nele se identificam as causas que tornam o debate em curso tão estéril e frustante, as razões porque os combatentes, nem nos raros esforços honestos de se fazer entender ao adversário, nunca falam da mesma coisa. Estas causas são os tabus dos dois lados. A questão da vida no lado do “sim”, os problemas sociais e da liberdade no lado do “não”. Concordo com JCD. E também acompanho a classificação da vida como questão a montante, e do resto como questão a jusante.

    Porém o tabu de discutir a vida não é exclusivo dos partidários do “sim”. A diferença é que, enquanto os partidários do “sim” tentam evitar a questão, os do “não” defendem o tabu da vida agressivamente. Pois para eles a própria “vida” é tabu, entendendo-se sob “vida” “vida humana”, como aliás toda a generalização lhes vem a calhar, e toda a diferenciação é imoral, inumano, do diabo.
    Não falta fundamento à acusação de incoerência e de hipocrisia, que lhes é feita pelo outro lado, porque, com poucas excepções, os mesmos defensores da vida tout court aceitam, na prática, relativizá-la, ao defender a preservação do status quo e da legislação actual.
    Mas com igual razão acusa-se os partidários do “sim” de cobardia ou até de jogo encoberto, porque em regra não assumem os critérios com que medem o valor da vida. A suspeita que o limite de dez semanas para muitos não passa duma escolha arbitrária, ditada por motivos tácticos, que na próxima oportunidade não se importavam de alargar, é difícil de provar falsa. Quando os partidários do “não” se auto-convenceram, apesar de saber melhor, do valor absoluto da vida, e assim se podem dar ao luxo de recusar discuti-lo, igual liberdade não pode assistir aos que admitem diferenciar. Que o mesmo assim evitam é, suspeito eu, porque estão conscientes de estar a abrir portas para terrenos em que racionalmente podiam entrar, mas emocionalmente não sabem orientar-se, presos pelas mesmas inibições morais dos seus adversários, que não provêm duma teoria ética racional, mas da tradição. São culturais, sociais e psicológicas.

    O que vale uma vida dum embrião de dez semanas, dum de catorze? Dum feto com oito meses? Dum recém-nascido que ainda não desenvolveu um conceito do “eu”? E já agora, a vida dum cão, que, ao contrário do bebé, é capaz de sentimentos de amizade, de fidelidade, e até de luto? O que vale a vida dum deficiente profundo? Duma pessoa em coma?
    Essas perguntas são mais do que difíceis: são assustadoras.

    A quase todos nós falta coragem de pôr em causa a diferença e superioridade categórica de qualquer vida humana, seja em que condições, em relação a qualquer outra vida, ou outro valor. Inibe-nos um sentimento de culpa irracional que persiste mesmo em pessoas que de resto interiorizaram uma visão científica do mundo, acreditam na evolução, no "eu" como produto da consciência, na consciência como actividade cerebral, nessa como processo electro-químico etc. Apesar da formação científica não se sentem capaz de abandonar o conceito da alma, no sentido essencialista. Não lhes parece absurdo que ela habita, entidade metafísica, sobrenatural, o embrião humano de poucas semanas, um organismo sem cérebro, sem sistema nervoso sequer.
    Já a referem um pouco envergonhado, lá isso é verdade: Chamam-na anima, e o momento mágico que transforma um organismo numa pessoa plena, o momento do sopro da anima.

    A bottom line é: Por muito que o se nega, se a objecção à despenalização do aborto tem uma fundamentação, ela é religiosa.

    (actualizado)

    Adenda:
    As minhas sinceras desculpas ao João Caetano Dias, que por engano julguei autor do blogue Hole Horror, e à/ao JCD, verdadeira/o autor(a) deste blogue, que acabou de informar-me do equívoco. Fico-me com a consolação de que, no que diz respeito a minha estima, nenhum dos dois fica mal ao lado do homónimo, quer em relação à inteligência dos textos quer ao bom gosto das fotografias...

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