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  • 5.11.06
    Diálogo (continuação)

    A:
    E você, é a favor do aborto?
    B: A favor da sua despenalização.
    A: Porquê?
    B: A começar por causa daquilo que discutímos há pouco. Acho a situação actual, o aborto clandestino generalizado, intolerável. Pelos riscos de saúde, e por achar nocivo para uma sociedade sustentar leis que não consegue ou não quer fazer cumprir.
    A: Então está também a favor de abandonar os limites de velocidade nas estradas, da despenalização do furto de automóvel e do tráfico de drogas?
    B: Não. Isto é diferente.
    A: Como?
    B: Admito mais legitimidade ao interesse duma mulher que pretende terminar uma gravidez indesejada do que ao interesse do aceleras, do ladrão, ou do traficante. Ao contrário destes, ela está perante uma situação que lhe ameaça afectar gravemente a sua vida, duma forma com que ela se julga incapaz de lidar.
    A: Do outro lado do referido interesse da mulher está a vida dum ser humano, que quer exterminar.
    B: Este ser humano é apenas um embrião.
    A: Um ser humano.
    B: Na nossa conversa anterior também você admitiu estabelecer diferenças entre o valor da vida humana em estados de desenvolvimento diferentes.
    A:in extremis! Só se sou obrigado de escolher entre elas, não podendo salvar todas. Não é isso o caso do aborto.
    B: Tem razão.
    A: Você não acha a vida humana sagrada? Merecedora de defesa em todo o caso?
    B: Colocada a questão assim, só me resta responder “não”. Isto é, se incluo o embrião neste conceito de “vida humana”. Mas acho essa inclusão algo forçada.
    A: Forçada?
    B: O embrião é certamente vida humana, mas não possui as características, que tornam a vida humana especial e, no meu entender, especialmente merecedora de protecção.
    A: Oiço aqui soar o slogan nazi de “vida não merecedora de viver”.
    B: Compreendo isso. Admitir abertamente que se atribui valor à vida humana de forma diferenciada, expõe ao risco de ser colocado na companhia dos autores da “eutanasia” dos deficientes, ou seja do seu extermínio sistemático. Parece-me ser essa a razão porque os defensores da despenalização evitam discutir o valor da vida neste debate, e preferem concentrar-se exclusivamente nas razões das mães. Enquanto a generalidade dos defensores do Não dá-nos a ideia de que não há aqui nada a discutir, porque toda a vida humana é sagrada, ergo absolutamente valiosa. Mas na realidade é esse medir do valor da vida do embrião contra o bem-estar da mãe a única maneira pela que se pode encontrar uma justificação de qualquer aborto. O que fazem todos, como também você ontem, que admitem casos em que prescindiam da penalização. Só que medir o valor da vida é um grande tabu.
    A: E ainda bem!
    B: Não acho. Não falamos duma situação rara ou até hipotética. Médicos e equipas de salvamento, por exemplo, têm que fazê-lo todos os dias. Gostava que me dissesse qual é o critério que aplicou quando escolheu a criança de sete anos em detrimento do feto de sete meses?
    A: Hm. A escolha ocorreu-me de imediato, de forma instintiva. Talvez porque a vejo, ao contrário do feto. Porque creio que ela, os seus pais, os familiares sofriam mais com a sua morte do que sofriam no caso da morte da criança ainda não nascida.
    B: E na escolha do feto de sete meses em detrimento do embrião de sete semanas?
    A: As mesmas razões. Mas está a desconversar! Já admiti que faço escolhas se for inevitável, mas nunca escolho a morte dum ser humano, sempre escolho a vida! Ao contrário de quem aborta.
    B: Não estou a desconversar. Onde eu quero chegar é isto: O que é que torna a vida humana tão valiosa? O que é que torna-a mais valiosa do que a vida dum coelho, por exemplo?
    A: Mas tem alguma dúvida que a vida humana tem mais valor do que a dum coelho?
    B: Não. Mas gostava de ouvir a resposta, gostava de saber o que é que confere o valor maior ao ser humano, comparado com o coelho, que todas as semanas acaba na minha frigideira.
    A: Antes de mais, ocorre-me a razão religiosa: Porque é feito à semelhança de Deus.
    B: Contra essa não posso apresentar nada. Respeito a sua religião, mas não posso discutir o assunto no plano da religião, que não partilho. Se pudesse, diria talvez: Não me ocorre porquê o coelho não seria feito igualmente à imagem de Deus... Mas não quero discutir isso, iniciámos esta conversa no pressuposto de que se pode e deve discutir a despenalização do aborto no plano moral e político, não da religião.
    A: OK. Não obstante de considerar toda a criação um milagre, coelho incluído, está para mim fora de questão que o homem é muito especial, pela sua consciência, sua vontade, sua capacidade de amar...
    B: Exactamente. Também eu acho que são estas as características que distinguem a vida humana. Que lhe dão mais valor. Nenhuma delas verifica-se no embrião.
    A: Errado! Elas estão lá todas, só ainda não se desenvolveram. Por isso considero o aborto um crime, porque a esta maravilha é roubada a oportunidade de se realizar. Em vez de deixar a natureza tomar o seu curso, deixar desabrochar a vida!
    B: É verdade, o aborto impede a realização dum ser humano. Mas não alinho consigo na sua formulação que lhe seja roubado o futuro maravilhoso. Este "quem", a quem é roubado o futuro, para mim ainda não existe. O embrião ainda não é uma pessoa. Não tem nenhuma característica que distingue uma pessoa.
    A: Tem-nas todas, in nuce!
    B: Vou ver se consigo fazer-me entender: Isto é uma questão de perspectiva. Numa perspectiva cósmica, por assim dizer, do ponto de vista de Deus, já lá está tudo no embrião, não faz diferença distinguir se este ser humano já se concretizou naquilo que lhe é característico ou ainda não. No Seu plano, este ser milagroso estava previsto existir e nós impedimo-lo. Como aliás impedimos a existencia de tantas outras potenciais vidas humanas, igualmente valiosas, através da contracepção e até da abstenção! Mas no nosso mundo térreo, em que há pessoas que interagem e devem, quando for necessário, ser protegidos uns dos outros, o embrião não existe como pessoa. Porque não reúne as condições mínimas.
    A: Discordo. Isto é, constato a minha total divergência desta mundivisão! Não posso deixar de ter em conta o que chama perspectiva cósmica ou, como diz, o ponto de vista de Deus. Não vê para onde leva o seu critério? Imagine-o aplicado a recém-nascidos, deficientes, a doentes graves ou terminais! Não deve retirar-lhes também o estatuto de pessoa? Não leva o seu critério a um mundo em que o direito à vida só é reconhecido aos fortes e saudáveis? Não está ver que está a colocar os fundamentos para o massacre, muito para além do dos embriões?
    B: Preocupações e acusações graves! Mas acho que está incorrer na falácia do plano inclinado. Está a desenhar um cenário que ninguém quer, e que colide com o sentir moral da esmagadora maioria das pessoas, meu incluído. Se o meu critério não proíbe o aborto dum feto de cinco, de oito meses, matar um deficiente profundo ou um doente em coma, isto não significa que defendo que isto se faça. Mas se escuto ao meu sentir moral no caso do conflito entre uma mulher aflita por estar grávida sem querer e o embrião, não oiço uma voz clara a favor do embrião, pelo contrário. E uma vez que me falta a orientação religiosa, que de facto me parece, no caso do aborto, tão arbitrária como a doutrina da inferioridade da mulher noutra religião, recorro à razão e meu sentimento humanista, que me induz a atribuir a todos que partilham comigo a condição humana, os mesmos direitos. Que no caso de conflito devem ser conciliados segundo um critério que gostaria de chamar economia de sofrimento. Minimizar o sofrimento tanto quanto possível para todos. Nesta economia, um ser, que seja humano, mas que não é dotado de consciência e de sentimentos não é equiparável a uma pessoa que isso tem.
    A: Não vamos acabar por entender-nos.
    B: Não.

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