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  • 15.4.06
    Tentar navegar em águas agitadas

    Caro Nuno,

    fico grato pelo teu post sobre o debate do teu apelo. E fico grato e feliz com a tua apelidação de mim como amigo, apesar das posições divergentes que temos nesta questão e de alguma desilusão que te adivinho na tua apreciação do meu repto. Pois quando dizes que nunca imaginaste que poderias ser intimado (o itálico é teu) a explicar-te e a expor as razões (idem) subjacentes a tal iniciativa, não posso deixar de me achar visado. Fui eu que te pedi de precisares “em nome de quem, a quem e para quê” lançaste o teu desafio.
    E recusas de responder, fazendo tuas as palavras de Francisco José Viegas:

    “Não estou na disposição de discutir com ninguém a ideia de eu acender uma vela em homenagem às vítimas do Pogrom de 1506 e da Inquisição portuguesa. Eu vou. Não obrigo ninguém a ir. Não exijo que ninguém vá. Pedi a alguns amigos que me acompanhassem. A minha decisão é puramente individual, e quando escrevo «nós vamos» refiro-me aos que vão e querem ir. Portanto, não estou disposto a discutir aquilo que a minha liberdade individual e as minhas opções e crenças me levam a fazer.
    Aliás, não entendo nem a natureza da discussão nem o seu objectivo.”

    Sinto aqui bastante crispação que me parece toldar o raciocínio. O que pode ser razoável para o FJV, que não lançou este desafio, deixa-me algo perplexo da tua boca. Fazes um apelo, mas recusas-te a explicá-lo melhor a quem o solicita? Que devo concluir disto? Que me enganei, que o apelo não me era dirigido? Que a minha pergunta é tão absurda, que mais ninguém se interessará pela resposta? Ou que achas que o meu pedido de explicação não merece resposta por ser de má fé?

    E porque entendes o meu pedido como intimação? A minha pergunta não foi retórica. É verdade que, para a minha triste surpresa, também ouvi da boca de outro blogger que estimo muito, do Gabriel Silva, que essa pergunta constituia um processo de intenção. Tentei imaginar como lhe podia ocorrer essa ideia, e conclui que acha que quis insinuar motivos inconfessáveis. Mas por acaso só me ocorrem motivos confessáveis. No post O comentário do alemão apresentei duas possiveis leituras. Duas leituras muito claras e explícitas. Nenhuma delas indigna e escandalosa, só diferentes. Uma assumiu a defesa duma causa comum a todos a quem se dirige o apelo, outra a defesa duma causa particular.
    Acho que a possibilidade da leitura de que a comemoração teria como objectivo não só a memória, mas o reconhecimento duma dívida moral por parte dos portugueses para com o povo judeu, afasta possiveis apoiantes. Se esta leitura não é intendida, não seria melhor evitá-la, na medida do possível? Mas se ela também o é, não seria então melhor, em nome da transparência, deixar isto claro?
    (Eu pessoalmente não acho que intendes o reconhecimento duma dívida moral, mas percebo que alguém possa achar o contrário. Não estou 100% seguro que não o fazes, mas digo-o outra vez: reclamar esta dívida não seria escandaloso!)

    Dizes ainda:
    “Nada disto teria acontecido se os mortos não fossem judeus portugueses; se este desafio à lembrança e à preservação da memória não tivesse sido feito por um judeu; caso não tivesse partido de um blog marcadamente judaico escrito por um judeu. Este “questão” não existiria (nunca!) se eu não fosse quem sou…”

    É verdade. Só, porque o escreves confirmando uma observação minha, tenho de prevenir dum malentendido: Quando desejei que tivesse sido um não judeu (o Rui MCB) a lançar o apelo das velas no dia 19 de Abril, não entendi, obviamente, que se devia ou podia omitir o facto de que os assassinados do massacre de 1506 foram judeus e foram assassinados por serem judeus. Muito pelo contrário. Só que achava que teria sido melhor para o apelo, se ficasse acima de qualquer suspeita que ele foi feito para lembrar os nossos mortos, os nossos crimes, para o nosso bem. Ainda vou explicar melhor a minha insistência no “nós”...

    Felizmente acabaste por exprimir ainda de forma muito clara o que te moveu para o apelo. A memória. Eu acredito, mais, sei: A Rua da Judiaria é prova como estás empenhado na preservação, na reconstrução da memória dos judeus portugueses. E o sucesso do teu blogue é o reconhecimento do serviço que com isto prestas não só aos judeus mas também aos portugueses em geral.

    Mas com esta manifestação isto é diferente. Aqui não só tomamos conhecimento da história. Esta homenagem é um acto simbólico em que as pessoas participam partindo de pontos de partida diferentes. Para ti ela é a evocação de mais um episódio do sofrimento do teu povo judeu, nada melindrosa para o teu, o vosso amor-próprio colectivo. Para os portugueses não judeus, ela é o reconhecimento dum episódio vergonhoso, que mancha a época mais constituinte para o seu orgulho nacional. Para além da inevitavel ferida narcísica (perdoa-me o psicologismo) que o reconhecimento público deste crime constitui para a alma nacional, há um outro problema que agrave a resistência à homenagem:
    Que uns se sentem convocados pelos representantes das vítimas para participar nela como representantes dos assassinos.

    Para que os descendentes das vítimas e os descendentes dos assassinos consigam lembrar conjuntamente os mortos de 1506, é preciso construir um “nós” que abrange todos da mesma forma, e em que cada participante se assume tanto como representante dos perpetradores como das vitimas. O que é possivel, na irmandade que partilhamos num plano superior ao dos nossos povos, na nossa humanidade.

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