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  • 14.3.06
    Jirco

    Encontrei-o no gabinete de arquitectura em Berlim, em 1994, quando lá voltei por uns meses para ganhar o dinheiro que em Portugal não conseguia. Ele era um fugitivo da guerra de Bósnia, um rapaz muito magro com ca. de 25 anos, e trabalhava como operador de CAD, onde se distinguia pelo empenhamento e pela sua solicitude extrema.
    Muitas vezes, ele e eu, imigrantes temporários sem vida privada, permanecíamos no atelier a trabalhar até muito tarde. Aí, depois dalguma reserva inicial, começou a responder às minhas perguntas curiosas sobre o que lhe acontecera, num alemão espantosamente bom, aprendido em meio ano.

    Era de Mostar, filho dum homem de letras, professor universitário, personalidade respeitada na cidade, de quem falava com muito carinho e admiração. Tinha uma irmã que também vivia na Alemanha, mas não em Berlim e que devido ao seu estatuto de fugitivo de guerra não podia visitar.
    Não sei se era por delicadeza excessiva minha ou pela resistência consistente sua, mas ainda hoje não sei ao certo da sua condição étnica. Insistia em chamar-se Bósnio, e antes da guerra, percebia-se, todos da sua familia foram bons jugoslavos. Com o tempo no entanto entendi que o pai era da origem croata e que a sua mãe não. De qualquer maneira, na sua família, nem à condição étnica nem à religiosa se dava relevo.

    Até ao eclodir da guerra civil, ele estudara engenharia aeronáutica na sua cidade natal. Falava da sua vida antes com nostalgia, que se percebia ser dum rapaz da classe média educada, despreocupado, inteligente, com ambição profissional mas também com apreço pela boa vida.

    Um dia a milícia, nunca me disse qual, entrou na casa e levou-o. Durante três noites e dois dias espancavam-no numa cave na cidade. Conhecia pessoalmente alguns dos seus maltratores. Um era um antigo colega do liceu, que até tinha frequentado a casa dos seus pais, em tempos de miudo. A resposta porque este lhe agora fazia isto, que Jirco solicitou e o outro lhe deu, de que seria em vingança por uma namorada roubada, não lhe fazia qualquer sentido.
    Depois levaram-no para um campo de concentração, algures na floresta. Para além dos espancamentos, torturaram-no com choques eléctricos. E havia apelos em que tinham de apresentar-se em fila para serem seleccionados. Tinham de dizer o seu número: Um, dois, três, quatro... Depois escolheram ou os numeros pares ou os ímpares para levá-los para uma “viágem de negócios”. Os que foram, nunca mais voltaram.

    Jirco atribuia o facto de não ter perdido a sanidade mental à paisagem, que foi de rocha calcária, cujas pedras podia usar como giz. Com a ajuda do giz, chegou a recapitular toda a álgebra linear e a geometria analítica que aprendera. Deu-lhe conforto que as leis da matemática continuavam válidas.

    Por dois meses ficou no campo, até que o seu pai conseguiu identificar o seu paradeiro e comprar a sua liberdade, por 20.000 DM. Depois foi, primeiro na bagageira dum Mercedes, até a Croácia, e à seguir via Eslovénia e Austria para Berlim, onde lhe foi concedido, por enquanto, o estatuto de fugitivo de guerra. Aqui recebia também tratamento médico para remediar as consequências da tortura. Entre outro estava impotente.

    Dizia-me que por um lado tinha muitas saudades da sua cidade, que descreveu como maravilhosa, e da sua família, claro, mas por outro não conseguia imaginar-se capaz de voltar a viver lá, mesmo se fosse em segurança, e encontrar na rua, dia sim, dia sim, pessoas que fizeram estas atrocidades. E não lhe interessava em nome de quem e à quem, porque, como sempre fez questão de realçar, nesta guerra não havia bons.

    Pensei eu para mim, se ele é ainda capaz de dizer isto, depois de tudo, talvez não tem razão.

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