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  • 14.7.05
    Ironia? Há quem diz que perceber é mesmo traição!

    «Mas nunca me parecia razoável, acharia mesmo uma traição, querer “meter-me na cabeça” de Hitler entre 1933 e 1945, quando os “meus” o combatiam e ele os queria matar.»

    (José Pacheco Pereira, no Público de hoje, à propósito da nossa guerra contra o terrorismo. Actualização: Agora disponível online no Abrupto.)

    Sempre estranho um pouco quando oiço alguém qualificar o tom do Quase em Português como irónico. Não seria esse o termo que escolheria.
    O meu post de anteontem "Perceber é que não" é um exemplo: Mais do que ridicularizar, quis meter me na cabeça(!) dos que são contra o "perceber", e enunciar o seu pensamento de forma explícita e, admito, propositadamente exagerada.

    Como se vê, no meu post de anteontem não exagerei nada. No artigo de Pacheco Pereira está tudo, ipsis verbis e sem ironia nenhuma, o que anteontem julguei estar a caricaturar.
    (Coincidência ou talvez não, pois embora duvido que o JPP lê o Quase em Português, acho já provável de ele ter apanhado a ideia de equiparar o perceber à traição no Terras do Nunca, que me citou.)

    Mas vamos ao que interessa:
    JPP insiste no perigo real do terrorismo, no perigo de sofrer ataques incomparavelmente maiores do que os até agora sofridos, com armas não convencionais. Aqui concordo.
    Por isso insiste na necessidade de que nós mentalizarmo-nos de que estamos em guerra. Reconhece que merece discussão o significado de “guerra” neste novo contexto, mas curiosamente isso não o impede de recomendar comportamentos e virtudes da guerra clássica. Fala da frontalidade, como essa fosse uma opção unilateral possível, na guerra contra o terrorismo.

    Escreve ele, na sequência da frase citada no início do post:
    «As únicas explicações que me interessavam, as únicas “causas” que eu queria perceber, eram aquelas que me permitiriam derrotá-lo funcionalmente, as que eram instrumentais para acabar com eles e com os seus. É importante perceber que, mesmo nas questões onde o meu pensamento lhe admitia “razão”, essa razão só pode ser defrontada depois da eliminação dele – válido para Hitler, ou Estaline, ou Bin Laden. Não há causalidade que me interesse porque ela institui uma nobreza de pensamento qualquer, que o ajuda a matar-me e que institui verdadeiramente o niilismo. E da falência do pensamento ocidental, da sua dificuldade e complexo em lidar com as suas fronteiras culturais e civilizacionais, está a nascer o niilismo e a face do niilismo actual é a justificação do terrorismo da Al-Qaeda. Uma coisa é o movimento livre do pensamento, o voo crepuscular da coruja, que não conhece limites ao “pensável”, outra é a incorporação, quase sempre como culpa, da vontade de morte (a minha) pelo alheio. Aí a boa tradição do pensamento ocidental é outra: o combate frontal e directo.»


    É notável a franqueza do artigo, não por último pelo que como defende e explica a característica talvez principal do estado de guerra: A suspensão temporária da moral em nome da auto-preservação: "Na guerra não se limpam as armas."
    (Há um famoso cartoon de Olaf Gulbransson da 1ª Guerra Mundial, em que a filha pergunta: "Mãe, depois da guerra os Dez Mandamentos voltam a vigorar?")
    Mas vou deixar a crítica moral desta invocação do cinismo clássico da direita, que reserva a moral para os domingos e os bons tempos, de parte, e debruçar-me sobre a sua argumentação na luz do nosso interesse, isto é: a nossa sobrevivência física e cultural do terrorismo.

    Ressalta a incapacidade de JPP de conceber o interesse em compreender o inimigo sem que esse seja associado a um sentimento de culpa, cuja origem (a da sua alegada existência) vai buscar na nossa cultura judaica cristã.
    Falando por mim, recuso essa ideia liminarmente. Não sinto culpa nenhuma em relação aos terroristas, nem em relação às populações islámicas que eles alegam representar. Já que estamos na psicologia amador, quer me antes parecer que esse sentimento de culpa - se existir - é um fenómeno geracional, dos soixante-huitards, nomeadamente daqueles que em tempos aderiram às ideologias marxistas, incluido aqueles que hoje estão a expurgá-las. Eu, pertencente a outra geração, e muitos que conheço, não têm nada a ver com essa geração, nem com as suas ideologias, nem com o seu típico espírito de missão. A ideia de que podia atribuir legitimidade qualquer aos terroristas, nunca me ocorreu, tão pouco como uma vez podia achar ou sentir que, de alguma forma, "nós" merecíamos os ataques deles.
    Sinceramente, o JPP arranje quem enfia este carapuço, eu não o faço.

    Mas quero perceber o inimigo. Explico, aproveitando o exemplo que o JPP avançou, o do combate a Hitler, para demonstrar como este é falacioso, e consequentemente as conclusões que daí tira.

    Vencer a Segunda Guerra Mundial (na Europa) passava de facto pela derrota total e física de Hitler e dos meios militares a sua disposição, e pela derrota psicológica e o controlo efectivo das populações que o apoiavam ou continuavam a apoiar, através da ocupação do território.

    Transcrito o programa para a guerra contra o terrorismo, lê-se: O objectivo é a derrota total e fisica de Bin Laden e de toda a sua organização, dos meios a sua disposição e a derrota psicológica e o controlo efectivo das populações que o apoiam.

    Basta a simples transcrição deste programa para ver que, mesmo se seria possível, e espero que será, a derrota total e fisica de Bin Laden e de toda a sua organização e dos seus meios; a segunda parte, que no caso da Segunda Guerra Mundial passava pela ocupação de Alemanha durante três anos, com governo militar, e de mais quarenta, duma forma sucessivamente mais suave e "amigável", não parece exequível, ainda menos à luz da recente experiência feita no Iraque.

    Mas mais interessante na questão do compreender é isso: A vitória sobre a Alemanha só não foi uma vitória de Pirro, porque os vencedores se deram ao trabalho de perceber o inimigo, ou seja, não Hitler, mas as motivações dos alemães que o elegeram, e em consequência optaram por não repetir o erro de Versailles, e de dar-lhes, desta vez, uma perspectiva dum futuro com dignidade.

    Não estou muito optimista em relação à derrota total e definitiva da Al-Qaeda, pelo simples e óbvio facto de que ela não precisa duma estrutura sólida e geograficamente localizada, como a tinha o inimigo clássico.

    Mas mesmo se a Al-Qaeda deixasse de existir, o problema do terrorismo apocalíptico não está eliminado. Se não o atribuisse exactamente à opção de não pensar nos motivos do inimigo, acharia muito estranho que pessoas inteligentes podem acreditar que a solução do problema possa ser a vitória final sobre a Al-Qaeda. Também acho estranho e assustador (talvez mais ainda por ser alemão) que pessoas inteligentes ainda acreditam em vitórias finais. Mas, pensando melhor, isso pode muito bem ser uma daquelas "mentiras necessárias" que se "justificam" no estado de guerra...

    O terrorismo continua ameaça, enquanto há as seguintes condições: Ódio e uma ideologia condensadora e canalizadora deste ódio, que esteja a mão, e a disponibilidade de armas de destruição maciça.
    Para combatê-lo podemos fazer, no meu entender, isto:
    - Combater o inimigo identificado.
    - Impedir a distribuição de armas de destruição maciça.
    - Combater as razões do ódio e as ideologias que se servem dele.

    Não me parece razoável confiar no sucesso só das duas primeiras opções. E parece me igualmente irrazoável de começar com o terceiro combate só quando ganho o primeiro. Ninguém sabe quanto tempo o primeiro combate durará, ainda mais se não apoiado pelos outros.

    E isso leva-me a valorizar o outro perigo, que é interno: A proposta declaração do estado de guerra.
    A suspensão temporária da moral, e, não nos esqueçamos, dos direitos cívicos, e ainda a proscrição do pensamento "traidor", por um tempo indefinido, é algo que a nossa civilização não pode suportar.

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