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  • 28.3.05
    IVG é holocausto?

    Até hoje nunca escrevi sobre o aborto no Quase em Português, mas nos últimos dias comentei dois posts sobre o assunto, e levei para trás, como se costuma dizer. Daí penso ser altura de também eu dar a minha colherada. Apesar de ter ouvido já repetidas vezes que neste debate ninguém convence ninguém. Teria gostado de desenvolver algumas questões sem logo traír a minha posição neste debate - que preferiria só denunciar no fim - mas vai me ser difícil. Porque basta referir um lado ou como "defensores da despenalização da IVG", ou como "defensores do aborto" ou até "abortista", e já se está arrumado no seu campo. Whatever...

    É inegável que um embrião é vida humana. E que, logo, um aborto voluntário é matar intencionalmente uma vida humana. Para muitos opositores da despenalização, a discussão termina já aqui. A vida humana é sagrada, em caso algum ela pode ser extinta. Ponto final.
    Pergunto: Porquê?
    Se a resposta se limita ao porque Deus assim manda, então não há mesmo nenhuma base para diálogo. Tão pouco como para o diálogo com quém defende pelas mesmas razões outra coisa qualquer, seja isto o uso do véu, uma determinada dieta obrigatória, ou a aplicação da sharia.
    A discussão pública sobre o aborto não pode ser uma discussão religiosa, deve ser moral. Que para algumas pessoas religiosas isso acaba de ser a mesma coisa, não as dispensa de discutrir com os que não partilham a sua religião no plano moral.

    Para mim, já deve ter transparecido, o raciocínio não termina na descoberta de que se trata de vida humana. Parto, não quero escondê-lo, para a abordágem do assunto com um juízo pré-concebido, emocional e largamente irreflectido, que me diz que aborto é uma coisa má, feia, mas longe de algo comparável ao assassínio. É esta a minha posição de partida, que não faz de mim um "abortista" (acho eu), mas uma pessoa que acha a decisão de abortar susceptível de ser ponderada em comparação com outros valores ou objectivos. Assumida esta posição ainda não sustentada racionalmente, vou agora procurar ganhar algum terreno debaixo dos pés.

    Tento perceber o que caracteriza vida humana. Para conceber uma ideia sobre o que é vida humana não vejo melhor forma do que fazê-lo em contraposição à vida animal e à vida vegetal. Vida humana é vida consciente. É vida que se apercebe de si próprio como agente entre outras vidas, capaz de localizar-se no espaço e no tempo, de se imaginar um futuro e um passado, dotado de esperança e vontade. Com a capacidade de amar e ser amado, de ser feliz e de sofrer.

    Quando se mata um embrião humano, mata-se uma vida humana, que podia ter sido isso tudo. Mas ainda não foi. Não se rouba a vida a um ser consciente, que sente, pensa, quer, age, que ama e é amado. Mata-se um ser vivo, que podia ter vindo a ser tudo isso, mas não o é.
    Impede-se a concretização de algo único e maravilhoso. Mas em relação a inegável aniquilação desta vida que tem o que tem de essencialmente humano ainda só em potência, - o que é tão categoricamente diferente entre a morte dum embrião e o impedimento da fecundação, ou ainda, como sugeri num comentário na Grande Loja, o desperdício de tantas vidas em potência por causa de fecundações não concretizadas?
    Há um estado, em que a vida humana (o espermatozoide é vida humana...) ainda não merece a nossa solidariedade e protecção, e há outro, em que ela a merece em todo o caso e a todo o custo. O que não vejo, é um ponto nítido e indiscutível entre estes dois estados que marca a fronteira categórica, e menos ainda que este tem de ser a fecundação.

    Acabei de aperceber-me, ao escrever este post, que faço uma distinção muito substancial entre "vida humana" e "vida humana consciente". Melhor formulado: entre vida humana no simples sentido de vida dum ser da espécie humana, e vida que tem as características de vida humana, em contraste à vida animal.
    Faço esta distinção, e parece-me correcto fazê-la. Talvéz seria mais correcto, e mais nobre, não fazê-la. Simplesmente venerar e respeitar a vida. O que implicaria, desde logo, deixar de matar animais. Implicaria que o vegetarianismo se impõe tanto ou até talvéz mais do que a recusa do aborto voluntário. A sério: Não digo isso para levar o repúdio do aborto ad absurdum. Talvéz haverá uma época futura em que olhamos a maneira como hoje tratamos os animais da mesma forma como hoje olhamos para culturas que tinham como absolutamente normal e aceitável a escravatura.

    Mas ainda não estou lá. Como carne e não planeio, num futuro próximo, de deixar de fazê-lo. E estou à favor da despenalização do aborto. Quém me quer rotular, por isso, como abortista, o faça.

    P.S.:
    Mais grave é a qualificação do aborto como holocausto, como o César Miranda fez. Com base, quer parecer-me, neste silogismo erróneo:
    1. Aborto legalizado é a matança em massa de vida humana.
    2. Holocausto é a matança em massa de vida humana.
    Logo:
    3. Aborto legalizado é holocausto.
    O pressuposto implícito do César é que a segunda frase seja reversível: Que também seria válido dizer:
    A matança em massa de vida humana é holocausto.
    Primeiro, não acho correcto o formalismo de não distinguir de todo entre a vida humana dum embrião e a duma pessoa nascida. Que não é a mesma coisa, tentei demostrar no post. Mas mais grave e outra coisa: Tendo em conta o que se hoje denomina com holocausto, seria suficiente já um pouco de imaginação e só alguma informação para perceber que não há comparação possível entre o grau de crueldade e o indizível sofrimento que o termo significa, e o assunto para qual agora se pretende empregá-lo.

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