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  • 8.3.05
    De volta

    Eu estava tão cansado.
    O avião devia ter partido de Nova Delhi a uma da noite, mas por uma razão técnica, cuja natureza não nos foi dada a conhecer, o Boeing 747 só levantou voo às 4.30, hora local. Todo o tempo esperavamos no interior da avião. Depois dum longo voo, que passei duranto o maior tempo em pé, no corredor, a espreitar pela única janela vaga, a da porta, e a ver passar em oito horas as paisagens nocturnas que dez meses antes tinha percorrido em autocarros, em camiões, de comboio, no sentido inverso, aterravamos em Frankfurt, numa manhã soalheira mas fria de Fevereiro.

    Embora que já me tinha custado não adormecer no Shuttle Train, que ligava o aeroporto ao Frankfurt Hbf, ainda arranjei energia para procurar um compartimento vago, perto da locomotiva, para ser incomodado o menos possível. Arrumei a mochila e vi o ponteiro do relógio da estação saltar, abruptamente, para os dez e cinco, e no mesmo momento senti o comboio pôr-se em movimento. Estava de volta, na Alemanha.

    Ela entrou na estação seguinte, em Wiesbaden. Perguntou educadamente se me incomodava, o que neguei, e instalou-se no banco oposto. Uma rapariga talvez um ou dois anos mais nova do que eu. Acerca dos dezoito.
    Olhou-me, com um ar curioso, aberto.
    - Vens do aeroporto?
    - Sim.
    Ela era deslumbrante, mas eu não tinha força para fazer conversação.
    Lá fora passava a paisagem do vale do Reno. Também lindissima, e também só era capaz de registá-la superficialmente, sem maior envolvimento.
    - De onde é que vieste?
    - Nova Delhi.
    - Realmente?
    Voltou a olhar-me, agora com um misto de curiosidade e admiração, mas também com a autoconfiança natural de quem não precisa de ouvir que é bonita, que não faz disso assunto, nem implícito. Simplesmente é.
    Ela abriu o saco e tirou uma maçã apetitosa. Estendeu a:
    - Queres?
    - Não obrigado.
    Comeu-a ela. Poucas pessoas conseguem comer uma maçã com graça. Ela conseguiu.
    Sabia que estava a desperdiçar uma oportunidade, mas estava mesmo cansado. E sentia-me bem, muito bem. Afinal aqui estava a prova. Naquele momento apercebi-me pela primeira vez e com toda a clareza porque tinha feito essa viagem, sozinho, overland to India, dez meses com tanta solidão e tanto medo:
    Para voltar como outro homem.
    E voltei. Saber isso chegava-me para já.
    - Desculpa, queria mas não consigo estar mais comunicador. Estou muito, muito cansado. Penso que vou dormir. Não te importas de acordar-me antes de chegarmos a Colónia?

    Ela não se esqueceu. Saí em Colónia. Ela seguiu. Sem ter trocado sequer o endereço ou o número de telefone.
    Nunca mais fui abordado por uma rapariga bonita no comboio.

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