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  • 22.2.05
    Total Control?

    Não fui o único que reagiu à entrevista, que João César das Neves deu ao Independente, com gozo. Mas o meu amigo Timshel respondeu ao meu post com a sua inconfundível sinceridade e candura, que subscrevia a 100% as declarações de João César das Neves. E obrigou-me assim a explicar-me, a provar-lhe que a minha reacção não era só uma manifestação do politicamente correcto.

    Interessa dizer antes, que discorro sobre este assunto sem me escudar em qualquer doutrina científica ou religiosa, mas como quem se confrontou e confronta com a sua sexualidade e a dos outros, porque ela faz parte da sua - da nossa - vida.

    A repressão da sexualidade não é uma invenção da Igreja Católica. O JCN não o disse, mas todas as culturas desenvolveram regras sobre como se comportar em relação à sexualidade, e por duas razões óbvias: Primeiro porque ela é um instinto tão forte que se impunha o seu controlo para garantir uma convivência sem excesso de conflitos, e segundo porque o seu exercício (não controlado) gera vidas e assim influencia a estrutura social, as relações famíliares, dos clãs, condiciona questões de poder e propriedade, nomeadamente a sua transmissão às futuras gerações. Pode-se assim dizer, do ponto de vista antropológico, que a regulamentação da sexualidade surgiu como necessidade social, quer por causa da sua força perturbadora enquanto instinto, quer pela sua influência fundamental na forma como se garante continuidade da sociedade no tempo, de geração em geração.

    Dos dois argumentos acima apresentados, o primeiro - o que João César das Neves invoca -, continua válido: Ninguem gostaria de estar ele próprio ou ter a mulher ou filhos sob a ameaça de serem violados por quem sente desejo, e que não está inibido por uma norma de conduta.
    Já o segundo, que visa evitar a dispersão da propriedade e do poder através da fornicação e consequente procriação descontrolada, e por isso defende a família como o seu tradicional detentor, hoje já não se pode invocar nos mesmos termos como antigamente. A disponibilidade e o uso generalizado da contracepção desligam o acto sexual (inclusive o coito heterosexual) da necessidade da procriação, e a estrutura social nas civilizações ocidentais já não impõe a família tradicional como único e indispensável garante de qualquer estabilidade social.

    Sei que a Igreja Católica ainda acha que sim, e o JCN também, e um dos grandes objectivos do seu empenho na repressão da sexualidade, é a defesa da família tradicional. Por isso dão tanta importância ao combate ao uso de contraceptivos: Sem eles, garantir a estabilidade social sem recurso à família tradicional seria efectivamente uma tarefa muito mais difícil.

    Mas é manifesto, na argumentação de JCN, que a repressão da sexualidade não é visto só como meio para assegurar um determinado modelo social. JCM teme a força da sexualidade, teme que ela, sem controlo, se apodere da pessoa e a torne em sua vítima indefesa. Que a personalidade fique gravemente danificada pela obsessão sexual que inevitávelmente se instalava.
    Dí-lo, mas também só assim é explicável que insiste tanto nos efeitos maleficos da masturbação. Saímos então da área da sociologia e entramos na psicologia.

    A fome, o desejo de comer, é um instinto tão básico e forte como o desejo sexual. Para comer, os homens já deram prova de serem capazes fazer tudo, inclusive matar e comerem-se uns aos outros. Mas curiosamente conheço poucas pessoas que têm medo do desejo de comer. E são poucos também que conheço que sucumbiram tão completamente ao seu desejo de comer que se tornaram os seus escravos. - Porquê? Porque as pessoas comem regularmente e não vivem numa permanente tensão de desejo insatisfeito.
    Não sou apóstolo das teorias de Freud, nem das de Reich, não milito nenhum movimento de libertação sexual. Mas como muitos dos conceitos e análises desenvolvidos por Marx não perderam validade só porque a sua teoria da luta de classes e a previsão do progresso para o paraíso comunista falhou, assim não descarto o conceito do instinto sexual como energia, cujo fluxo desimpedido é benéfico e cujo bloqueio é altamente perigoso, só porque os sucessos terapeuticos da psico-análise ficaram aquém do prometido e Reich desenvolveu, no fim da sua vida, teorias e aparelhos hilariantes.

    Até calculo que o próprio JCN, e o Timshel, não acham desapropriado imaginar o desejo sexual como um fluxo de energia, que pode e deve ser contido e canalizado. Sei quem defende a supressão do desejo sexual advoga a sua sublimação, o que significa pôr a sua energia ao serviço de outras actividades, entendidas como benéficas. Não nego os resultados que a sublimação já deu, mas o alívio da energia sexual através de outras actividades é um processo dificil cujos resultados podem ser e já foram grandes, tanto pela positiva como pela negativa, e por isso necessita um controlo apertado (que a Igreja oferece, claro).
    Mas digo ao JCN que é o próprio bloqueio da energia sexual, o Triebstau, que torna a pessoa emocionalmente instável e dependente de mecanismos e regras para controlar a instabilidade. (As duches frias!) O que teme e talvez deve temer, é a avalanche resultante do bloqueio, não o fluxo natural e saudável.

    Será realmente necessário lembrar todo o universo sórdido que a repressão sexual criou e ainda sustenta? Os complexos de culpa das pessoas, nomeadamente dos adolescentes, que não conseguem – naturalmente – cumprir a exigência de castidade, e não só sofrem, mas, como culpados, se tornam refém dos que lhes dizem poder dar absolvição? Da duplicidade moral generalizada, que a moral sexual da Igreja fomenta, por exigir o impossível? Do contraste perverso entre o mundo límpido da família virtuosa, e do outro do pecado, entre os quais aqueles que têm poder de fazê-lo, os ricos, os homens, oscilam: O pai que volta do bordelo e beija a filha cuja virgindade para ele é um dado adquirido e indiscutivel? A menina que engravidou, porque não usou contraceptivos, e desonrou a família? Do rapaz que se safa? Dos abortos que se fazem para evitar este drama? De tantas outras coisas, que como as referidas me parecem quase ridículo mencionar por julgá-los do conhecimento mais que comum?

    É verdade, viver numa civilização significa controlar os instintos, regulamentar a sua satisfação, de forma que não se prejudique outros e a convivência pacífica. Felizmente as condições que temos hoje, nas sociedades modernas, permitem muito mais liberdade e obrigam a muito menos repressão, do que as sociedades antigas, em que a procriação foi ainda instrumento indispensável para a asseguração do poder, e em que por isso se arranjava casamentos e vigiava a virgindade das filhas, e a fidelidade sexual nomeadamente das mulheres, sob pena de morte.
    Entretanto a sexualidade libertou-se (quase) de ser um instrumento do poder.

    Graças sejam dadas a quem fez por isso, sejam-no homens ou Deus!

    P.S.:
    (Ou mulheres, como a Susana acertadamente repara no comentário.)

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