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  • 22.11.04
    Tabú e preconceito

    Ana Gomes, no Causa Nossa, descreve a nova comissária europeio para a concorrência, a holandesa Nelly Kroes, como uma mulher de negócios ocultos e com ligações à indústria do armamento, os que “esqueceu” mencionar na sua candidatura.
    E faz a seguir a essa apreciação uma especulação sobre a sua possível ascendência judia, partindo da semelhança do nome Kroes ao nome Cruz, e do facto histórico de muitos judeus portugueses se refugiaram, no século 16. na Holanda.

    Filipe Nunes Vicente (Mar Salgado) e José Flávio Teixeira (Ma-Schamba) indignaram se perante esta, como eles entendem, manifestação de preconceito (antisemita, claro, embora a palavra antisemita não foi utilizada nas críticas). André Belo (Barnabé), Luis Águiar Conraria (no comentário ao post do FNV) e agora Vital Moreira no Causa Nossa sairam em defesa de Ana Gomes.

    Acho que, em relação ao conteudo do post de Ana Gomes, se podem constatar sem equívocos dois factos:
    1. A descrição genérica de Nelly Kroes como mulher de negócios obscuros e comportamento eticamente duvidoso (pois oculta as suas ligações a uma empresa de armamento).
    2. O relacionamento da condição de mulher de negócios de sucesso com o suposto facto de ser judia.

    Se considero o post antisemita ou não, depende da apreciação se o post possibilita, convida ou até obriga a estabelecer o nexo entre estas três afirmações:

    - mulher de negócios duvidosos e com poucos escrúpulos
    - mulher de negócios bem sucedida
    - judia

    Enquanto acho que significaria fazer um processo de intenção afirmar que a autora do post quis estabelecer o nexo entre as três afirmações, parece-me indiscutível que o post possibilita esta leitura e serve assim objectivamente como argumento de reforço para qualquer leitor que já tem o preconceito de judeus como homens de negócios desonestos. E que destes leitores há, e muitos, certamente a Ana Gomes sabe. E daí acho o post – no mínimo - irresponsável.

    Mas por outro lado incomoda-me o tabú que existe em relação a toda a atribuição de características genéricas em relação aos judeus em especial e para qualquer etnia em geral. Cresci numa sociedade em que este tabú era – por boas razões – quase absoluto. Exactamente por causa do efeito acima descrito. Uma afirmação podia até ser ingénua, mas serviria na mesma como reforço de convicções e preconceitos cuja existência estava mais que comprovada e cujos efeitos foram dum insuperável horror. Por isso, o tabú existia – e existe – por duas razões: para evitar qualquer faísca que pudesse fazer ressuscitar o fogo do antisemitismo desenfreado, e por respeito pelos sentimentos dos sobreviventes do shoá, que compreensívelmente – não: muito justamente! - estavam e estão hipersensibilizados a este respeito.

    Só um tabú não é uma solução.
    O tabú suprime o problema, por algum tempo, mas não o resolve. Um tabú não convence quem devia ser convencido. Como crente na razão não acredito que se pode proibir pensar e discutir livremente questões como esta que a Ana Gomes insinuou ou pressupôs: Os judeus são melhores homens/mulheres de negócios?

    É ilegítimo colocar esta pergunta? É legítimo chegar a uma resposta para essa pergunta, seja qual for?

    A este propósito lembro me dum senhor (português), que numa conversa comigo se assumiu com o maior desassombro como racista. O seu exemplo era exactamente o povo judeu: Não vê qualquer pessoa excepto de quem não quer que ele é o povo mais inteligente do mundo? E comecou a citar me o elenco interminável das grandes figuras das ciências e da arte mundial, que eram e são judeus. E não basta assistir a quaisquer jogos olímpicos para confirmar que os negros são melhores atletas do que os brancos?
    Para ele, racista era qualquer pessoa que usava a o conceito da raça para categorizar os homens. Nada contra a sua definição.

    A questão é se nos podemos permitir-nos uma antropologia com este tipo de categorias: "Os judeus", "os arabes", "os alemães"...

    Faço o exercício com a afirmação implícita de Ana Gomes: "Os judeus são melhores homens/mulheres de negócios."
    Sabemos que entre os homens/mulheres de negócios de sucesso há homens e mulheres manhosos, desonestos, sem escrúpulos. Daí conclui-se facilmente, se aceitamos que existe uma predilecção dos judeus para os negócios, também a existe para os negócios obscuros. Ergo podiamos afirmar:
    Os judeus são os melhores homens/mulheres de negócios obscuros.

    Bem. Esta frase põe-me – e penso que não só a mim - os cabelos em pé.
    Porquê? Claro que é a descontextualização que subverte tudo. Mas sabemos como é tão fácil descontextualizar, que se descontextualiza todos os dias, que é de contar com estas descontextualizações, nomeadamente se sabemos que já existe um preconceito que as motiva. E isso sabemos: Esta ideia já serviu para preparar o caminho para os campos de extermínio.

    Não me agrada como defensor de liberdade das ideias e da expressão, mas tenho de admitir que há uma realidade histórica que condiciona estes raciocínios, queiramos quer não queiramos.

    Mas mesmo assim não quero conformar-me com a solução do tabú.

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