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  • 10.11.04
    Am Schleusenufer, 9. Novembro 1989

    No verão de 1989 chegámos, um jovem casal com um bebé de seis semanas, vindos de Portugal, a nossa casa extraordinária na ilha Lohmühleninsel em Berlim Kreuzberg. Como o último dente na boca duma velha, o prédio estreito, de quatro pisos e três fogos, erguia-se, entre terrenos baldios e barracas, no beco sem saida que era o Schleusenufer, a única rua da ilha. Dois dos nossos três quartos davam para a rua, que do outro lado não tinha prédios, mas o canal e a eclusa que deu à rua o nome. A ilha era o resultado da bifurcação do Landwehrkanal, que aqui entrava no rio Spree. Um canal estreito, mas nevegável, embora que desde a construção do muro sem tráfego. No outro lado da eclusa, por de trás duma fila de plátanos majestosas, havia uma típica fábrica berlinense, um prédio sólido e comprido de tijolo, com janelas altas e pé-direitos elevados, que estava semi-abandonada: uma ou outra empresa tinha aqui um gabinete, para poder tirar proveito de benefícios fiscais por estar sediada em Berlim ocidental. De resto, os espaços ou estavam fechados, ou - alguns poucos - aproveitados como lofts.
    A casa da eclusa contrastava com este fundo: fingindo ser uma moradia, com telhado de duas águas muito inclinadas, situava-se mesmo na margem do canal, por detrás da vedação em rede que separava a eclusa da terra firme de Berlim ocidental. Pois ambas as margens da Spree e também desta parte do canal, eram território da RDA. O guarda da eclusa era assim, tal como os motoristas da S-Bahn que embora circulando em Berlim ocidental, também estava sob a administração da RDA, uma pessoa de especial confiança do regime. Porque seria uma brincadeira para ele, se quisesse, em vez de voltar, todos os dias, no barco para o lado comunista, trepar a rede e fugir. Nem a torre de vigia, que se erguia como um farol macabro uns cinquenta metros em frente nas águas da Spree, seria um problema para ele.
    O outro lado, esse encontrava-se para lá do rio. Aqui, na Spree, não havia muro. Não era necessário. Para além da torre, bastavam as redes na água, os barcos patrulha e os fortes holofotes, que iluminavam toda a envolvente durante a noite, e que faziam com que eu, em todos os meses que vivia nesta casa, nunca dormi no escuro.
    O outro lado também ficava nas traseiras da nossa casa. O segundo ramo do canal passava a uns trinta metros por detrás do nosso prédio, e este era suficientemente estreito para justificar o muro no lado de lá da água. Por detrás dele, outro prédio, outra fábrica abandonada. Mas em cima do telhado dela estava montada uma galeria metálica, na qual patrulhavam os polícias de fronteira da RDA, os Kalashnikov sempre debaixo do braço. Era sob os seus olhares que tomávamos os nossos pequenos almoços na cozinha.

    No início uma pessoa podia achar este cenário perverso e incomodativo, mas na verdade a zona tinha um encanto muito próprio, um charme de fim do mundo. A Lohmühleninsel era, no sentido mais literal, um idílio a sombra do muro. Alí até se pescava, com calma, mesmo na margem do canal pertencente à RDA, protegido pelo próprio muro da vista dos guardas. E enquanto Kreuzberg na estação U-Bahn Kottbusser Tor ainda fervilhava de vida, com a sua fauna multi-cultural, de turcos, curdos, punks, estudantes, velhos berlinenses e activistas das varias seitas da extrema esquerda, aqui, mais em frente, descia-se da estação terminal Schlesisches Tor já num ambiente muito mais sossegado; e quem passava pelo Bonjour Tristesse de Siza Vieira e percorria a Schlesische Strasse no seu último quilómetro até ela esbarrar no muro, sentia à cada passo a crescente solidão.
    Já não havia mais pubs, nem sequer snack-bares turcos com Döner Kebap, nem lojas - só quase no fim, o quiosque que vendia cerveja de garrafa e vodka em frente do asilo dos sem-abrigo. A seguir veio a ilha, e quem virava à esquerda antes da bomba de gasolina abandonada, estava na nossa rua.

    Nos fins de semana, vieram aqui os turcos fazer pique-nique, abriam as portas dos seus velhos Ford Escort e Golf e inundavam este lugar com a sua música pop oriental. Nas noites dos dias úteis, menos barulhentos, vieram para o mesmo local as prostitutas nos carros dos seus clientes, para fazer, em dez minutos, o serviço, e ir se embora logo a seguir.

    Três ou quatro dias antes do 9. de Novembro estava sozinho em casa quando vi uma coisa insólita: Um rebocador, mais precisamente „empurrador“ de batelão amarrado a nossa ilha. Vi um homem com óbvio nervosismo trepar a vedação da eclusa. No meio do rio, um batelão abandonado à deriva. Mais tarde pude observar da minha janela como um barco da guarda da fronteira da RDA conseguiu apanhar o batelão antes de este chocar com a margem.
    Não sei por que razão, mas quando vi o homem nervoso não percebi logo o que se estava a passar e não me lembrei de olhar para a torre de vigia. Da casa da eclusa, não se via reacção alguma.
    Foi a única fuga a qual assisti. Não houve tiros.

    À parte desta história, tudo que sabia e sentia da agitação em que se encontrava a RDA vinha, como para todos os outros, da televisão: o quadragésimo aniversário da RDA, a visita de Gorbatchov, as manifestações de Segunda-feira em Leipzig, as fugas em massa da Hungria para a Austria, o drama emocionante na embaixada alemã de Praga.
    Eram tempos em que era animador ver o notíciário, mas tinha outras prioridades. Estava na recta final do meu trabalho de fim do curso, que devia entregar na terça-feira, 14 de Novembro.
    Na quinta-feira, 9 de Novembro, as 10h00 da noite, decidi terminar o trabalho por este dia. Os amigos, que ajudavam nos desenhos finais, já se tinham ido embora para jantar. O bebé estava com os meus pais em Westdeutschland e a Margarida fora mostrar os bares in de Kreuzberg a uma amiga que estava de visita de Portugal.
    Liguei a TV. Um reporter na rua, em frente da Oberbaumbrücke, falava excitadamente. “Aqui ainda está tudo calmo, vamos então mudar para o colega na Bernauer Strasse, parece que lá já estão a chegar os primeiros compatriotas...”
    Peguei no meu casaco e fui para a rua. A Oberbaumbrücke era aqui ao lado. Ela era a ponte na qual o U-Bahn antigamente atravessava a Spree, logo a seguir a estação Schlesisches Tor. Desde a guerra, a ponte estava fechada e até os carris desmantelados. Usava-se, sim, como ponto de travessia exclusiva para soldados das quatro forças aliadas.
    Comigo aguardavam lá talvez uma dúzia de berlinenses ocidentais a chegada dos primeiros que vieram do leste.
    Não demorou muito. Lembro me da atmosfera irreal e da enorme calma, em que tudo isso se passou, no nosso lado, nestas primeiras horas. E lembro me ter ficado impressionado pela extraordinária juventude dos visitantes. Um rapaz e uma rapariga, seguramente não com mais do que 16 anos, aproximavam-se da linha branca, que demarcava a margem do rio - oficialmente RDA - do território ocidental. Havia aqui as famosas placas: „Atention! You are Leaving the American Sector!“
    Antes da linha, paravam, e deram, de mãos dadas, o passo em simultâneo.

    As imagens desta noite e do dia seguinte, no Brandenburger Tor, no Tiergarten, no Kurfürstendamm, são conhecidas. Na minha ilha não se sentia ainda muita diferença. Isto só mudou no Sábado, quando veio uma auto-grua do lado da RDA e abriu uma fresta no muro onde ela atravessava a Schlesische Strasse.
    E o nosso mundo abandonado tornou-se preto de gente. Neste dia, tinha de ir para o centro da cidade ocidental, e demorei quase três horas para os 12 quilómetros. Não havia maneira de deslocar-se de carro, nas entradas do U-Bahn as filas chegaram a ter centenas de metros, e a minha decisão de ir de bicicleta revelou-se uma má ideia. Era mais um obstáculo que tive de empurrar, durante quase todo o percurso, no mar de pessoas.

    Durante todos estes dias havia um ambiente de festa, um sentimento generalizado de solidariedade e de enorme esperança. Mas não tardou muito que se fez notar o espírito empreendedor. Os primeiros que o revelavam eram os turcos que, compreensivelmente, estavam menos emocionados. Depois de o governo da RFA ter começado a distribuir, através dos correios e agências bancárias o „Dinheiro das Boas-Vindas“ (ca. de 10 contos para quem aceitava um carimbo no seu BI da RDA), na minha Schlesische Strasse, onde nem lojas havia, alinhavam stands improvisados que vendiam bananas, pastilhas elásticas e latas de Coca Cola morna aos novos visitantes.
    Demorou ainda umas semanas até os berlinenses ocidentais começavam a perder a paciência com o facto de já não haver lugares sentados no metro, e em vez disso filas de espera e prateleiras vazias nos supermercados. E que apareceu o primeiro T-Shirt que dizia, em berlinense: „Ick will meene Mauer wiederhaam!“
    O que é em português: „Quero o meu muro de volta!“

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