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  • 16.12.03
    SJ e SS

    Quando fiz seguir às minhas especulações sobre a orígem da desumanidade nos campos de extermí­nio aquele texto fascinante de Ignácio de Loyola sobre a obediência, isto era óbviamente intencional.
    Não é que quero postular alguma paternidade moral (ou seja, em relação a objectivos) de Loyola para a shoah; isto seria tão injusto como fazê-lo em relação a Wagner e Nietzsche, que de resto tinham mesmo muito pouco em comum com Loyola.
    (Mas em relação não aos objectivos mas ao método, há uma citação interessante de Hitler*: "Aprendi muito com a ordem dos jesuitas. Até hoje, nunca existiu uma coisa tão grandiosa na terra como a organização hierarquica da igreja católica. Transferi muito desta organização para dentro do meu partido." E Walter Schellenberg, antigo chefe da contra-espionágem alemã, disse o seguinte: "A organização da SS foi constituido por Himmler de acordo com os princípios da ordem jesuita. Os seus regulamentos e os exercícios espirituais prescritos por Ignácio de Loyola foram o modelo que Himmler tentou copiar exactamente. O título de Himmler como chefe supremo da SS era para ser o equivalente do "general" dos jesuitas e toda a estrutura era uma imitação estreita da ordem hierarquica da igreja católica." )
    Não me interessa aqui julgar Loyola; se isto acontecer, será um efeito colateral. Estou a tentar compreender assassinos. E aqui acho que a carta ajuda. A carta, de resto, fala por si.

    A obediência foi uma sempre reincidente explicação e justificação apresentada pelos arguidos nos processos que tentaram julgar os crimes nos campos da morte. E não me parece que era só conversa, só desculpas fabricadas a posteriori. Há aqui algo que evidentemente não desculpa mas que convém perceber. É verdade que houve animais que matavam e torturavam por prazer, mas a questão da obediência, e da convicção dos arguidos da sua inocência resultante dela, parece-me a questão chave: Sem essa obediência nada do que aconteceu poderia ter acontecido.

    A carta de Loyola é talvez o texto mais lúcido que uma vez foi escrito sobre a obediência. É uma pena que não encontrei nenhuma tradução portuguesa dela na net (o que não deixa de ser um pouco irónico, tendo em conta que ela foi escrito para destinatários portugueses...): Aqui havia uma tarefa meritória para os colégios jesuitas portugueses. Não sei se o Colégio S. João de Brito o faz, mas esta carta deveria ser leitura obrigatória nas escolas...
    Porque ela explica muito, explica como a obediência bem aprendida cria robots inteligentes, que não são atrapalhados por qualquer sentimento ou raciocínio divergente daquele que é transmitido pela cadeia de comando. Basta uma vez na vida ter se convencido da legitimidade do topo da hierarquia (para os jesuitas: Deus, para os nazi: Hitler), e nunca mais pensa-se nisso...

    Há mais uma outra coisa que torna essa carta tão importante. Percebi através dela o enorme fascínio que exerce a ideia da obediência absoluta. É uma tentação forte (que consigo sentir bem), para desprender-me de uma vez por todos do meu ego e de entregar-me, com todas as fibras, corpo e alma, à uma vontade alheia. Isto é um fascínio essencialmente religioso: É o doce canto de sereia da submissão.
    Essa atracção para mim era tão grande, que durante os anos da minha adolescência não consegui ler esta carta: Tinha o texto entre os meus livros, tinha curiosidade, mas desisti, ao mais tardar na segunda página, com um sentimento de repulsa, de pudor, como se de uma aproximação imprópria se tratasse...

    Afinal, talvez é melhor não. Não deveria ser leitura obrigatória nas escolas...

    * (não tenho uma fonte segura destas citações)

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